Uma coisinha de nada

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"Só tem uma coisinha de nada que precisa fazer", ela havia dito.

E agora? Acreditaria nela ou viraria as costas à única criatura que lhe dera atenção na vida?

Não, isto Coraline estava convencida de que não. Ela não poderia. Não depois de tudo.

Era tão fácil se afeiçoar a ela... Então por que o gato de Wybe parecia odiá-la tanto?

Eram muitas perguntas misturadas na calada da noite. Coberta pelo edredom e começando a se sentir vigiada, Coraline secou uma gota de suor (não de calor, mas de tensão).

O que decidir? Só havia uma escolha a ser feita, era concordar ou não. Mas se assim o fizesse, nunca teria sua vida de volta. Quer dizer, sua outra vida. Nunca mais veria sua outra família, outra escola ou qualquer resquício do passado. Seria um novo começo, exatamente como sonhara nesses longos anos de solidão.

"E afinal", concluiu, "não era isso que queria?" Quem realmente se importaria? Ela faria falta? Seria motivo de prantos e orações?

"Eu acho que não", foi o veredicto.

Podia ouvir os dois conversando animadamente na cozinha. Seria sobre ela?

Então, tudo que precisava fazer era descer e lhes comunicar sobre sua decisão, não é? Tudo daria certo. Não é?

Ela se levantou. Caminhou com cuidado sob as pontas dos pés e, claro, assim que desceu as escadas, lá estava ela. Era como se sempre desse de cara com ela, onde quer que estivesse ou fosse.

- Eu pensei sobre o que me ofereceu.

Poderia até ser uma alucinação devido a tudo que estava acontecendo, mas Coraline poderia jurar ter visto um tipo de sorriso estranho se formar no rosto de sua nova mãe.

Mas é claro que só poderia ser impressão causada pela luz fraca (aconchegante) do ambiente. Sua Outra Mãe era boa. Pura. Verdadeira. E Coraline confiava nela.

- E então... O que você me diz? – A Outra Mãe perguntou. Pergunta tola, a dela. Um joguinho, na verdade. Era óbvio, pelo tom de voz "alegre-contido", que conhecia a resposta.

Ela recomeçou a bater as unhas compulsivamente sob a mesa. Um hábito bastante peculiar.

- Eu...

Apesar da hesitação, Coraline não estava dividida. Sabia bem o que queria e não voltaria atrás.

Pensou em seus pais, os verdadeiros, lá longe. Ela os amava (não é?) e agora estava prestes a lhes dar adeus. Mas afinal, realmente os amava? Àquele ponto, não saberia responder, se lhe perguntassem.

Coraline enfim respirou fundo e soltou num só fôlego:

- Vou ficar com você.

Novamente a Outra Mãe sorriu daquela maneira incógnita (desta vez Coraline tinha certeza de ter visto bem o brilho de seus dentes).

- Só tem uma coisinha de nada que precisa fazer... – Ela repetiu, com sua voz cantada e levemente infantil.

- Eu sei... Os botões.

Coraline ainda podia visualizá-los dentro da pomposa caixa com laço de fita.

- Então – disse a Outra Mãe – vamos logo com isso! Quanto mais cedo terminarmos, mais cedo ficaremos juntas para sempre!

Ela se sentou no sofá e bateu de leve nos próprios joelhos, um sinal para que Coraline viesse se deitar em seu colo.

Assim o fez, ansiosa para acabar logo com aquela formalidade. Fechou os olhos e esperou pela dor que haveria de vir e passar, e então finalmente seria feliz.

- Estou tão feliz que tenha decidido ficar, meu amor!

E então começou. Coraline sentiu a agulha penetrando suas pálpebras e seus glóbulos.

Ela disse que não doeria.

Ela havia mentido.

- Shh – disse a Outra Mãe, tentado conter o grito abafado da garota – Está quase acabando.

Mas não estava. Seguiram-se incontáveis minutos que para Coraline pareceram horas. Ela não sabia se o que escorria por seu rosto eram lágrimas ou sague. Possivelmente os dois. Ainda conseguiria chorar, quando acabassem o procedimento?, se perguntou.

- Terminado – sussurrou a Outra Mãe.

Coraline ainda conseguia enxergar precariamente através dos 4 minúsculos buracos em cada botão.

Ela se levantou, apalpando desesperadamente à sua frete. Mas havia algo diferente, o ar se tornara mais frio, era difícil de respirar. E não sentia mais a presença ao seu lado.

- Agora ficaremos juntas... Para sempre!

Ela sentiu o sangue parar de correr em suas veias.

Lá estava ela. Mas... Não era mais a mesma. Seu pescoço alongava-se à medida que suas pernas também cresciam. Suas 8 pernas, agora. Seus traços bonitos e delicados davam lugar a uma feição monstruosa, os lábios abriam um largo sorriso demoníaco. Nem mesmo sua postura parecia humana. Ela era... Um tipo de aranha!

Esta foi a última imagem que teve, antes de sentir seu corpo pesando e indo cada vez mais para o chão. Sentiu a queda, mas não a dor. Era como se tudo estivesse acabando, como se nada mais fosse real.

- Você... Me enganou – Ela tentou dizer, mas percebeu que estava muito fraca para sequer abrir a boca.

Enquanto sentia sua alma sedo retirada do corpo (de algum modo ela sabia que era isso), só conseguia pensar em seus pais e em como fora ingênua e egoísta em deixa-los. Eles estariam melhor sem ela, que não fora capaz de valorizá-los enquanto pôde. Ela não os merecia.

Aquela criatura lhe prometera amor e lhe dera a morte.

E com esses pensamentos que não deviam ter mais de um segundo cada, Coraline deu um último suspiro antes de perder totalmente a consciência.

Uma coisinha de nadaWhere stories live. Discover now