Cinco homens levantam um enorme sino logo a frente uma igreja, tentando coloca-lo numa carroça. Era um dia quente, daqueles que te fazem derreter só de sair de casa, por isso algumas moças se puseram a preparar um suco de laranja gelado para os moços que ao terminarem o trabalho, se sentaram no meio fio da calçada para descansar. Garcia, o dono da carroça termina de ajeitar as coisas para a sua viagem colocando suas ferramentas na carroça ao lado do sino, até que sua marreta já propensa a cair, escorrega de seus braços e cai em cima de seu pé.
—Diabo! — Garcia gritou soltando o resto das ferramentas no chão.
—Garcia do céu! — Gritou um colega de Garcia que logo correu até o amigo, ao ver que o dedão de Garcia sangrava aos montes, o moço gritou. —Rita, rápido pega aqueles trapos na gaveta da cozinha!
A moça toda desesperada corre para dentro da casa ao lado da igreja e logo volta com um monte de tecidos velhos debaixo do braço, e um caneco com água em mãos. Ela entrega os panos para o moço que tenta parar o sangramento limpando o dedão de Garcia com a água e o enfaixando em seguida.
—Diabo, Diabo, Diabo! — Garcia gritava mais e mais.
—Calma Garcia, vamos pro hospital ver o que dá pra fazer com o seu pé!
—Tu tá doido homem? — Garcia questionou o colega. —Eu preciso fazer essa entrega! Se o médico ver meu dedão ele vai falar pra eu descansar até esse dedo ficar melhor.
—Se for necessário tu vai descansar mesmo, ficar com o pé pra cima e esperar!
—Vou nada! Quero ver você me impedir de fazer essa entrega. — Ao dar o primeiro passo em direção da carroça, Garcia da um berro, ele morde o braço tentando suportar a dor e mais uma vez, dessa vez com mais raiva ainda, ele diz. —Diabo!
—Rapaz tá vendo como você não tá bem? Tu não vai coisa nenhuma! E deixe de falar essas coisa! Não sabe que se chamar o coisa ruim, ele aparece?
—Isso daí é história pra boi dormir! E outra, quem tem medo do Diabo?
—Homem, toma cuidado com as coisa que tu fala em! Tu já não tá conseguindo andar direito, se o bicho ruim vier atrás de você, tu não vai conseguir dar nem dois passos pra fugir dele.
—Até parece que não consigo, eu vou é encher a fuça dele de buraco, isso sim!
—Mas como você é tonto em homem! Ó se ele for te buscar no caminho eu vou achar é bom! Pra tu aprender a não falar essas coisas!
—Me buscar, até parece, eu tô é protegido! — Garcia puxa uma pequena cruz que ele carregava em seu colar, por dentro de suas roupas.
—Mas tu não pode abusar da sorte né?
—Tu não se preocupa comigo e com o meu pé não viu? Eu vou entregar esse sino, ganhar uma prata boa e voltar aqui pra beber umas.—Do jeito que eu te conheço, eu sei que nem o Diabo te para.
—Viu só? Até tu falou o nome dele! — Os dois dão risada ainda parados na frente da igreja, os moços que antes estavam sentados, se levantam para ajudar Garcia a guardar suas coisas.
—Tu se cuida em! — Diz o moço dando alguns tapas no braço de Garcia.
—Se preocupa não, quando eu chegar na cidade eu te mando uma carta, vou ficar lá por uns dias, quando voltar eu posso até trazer umas lembrancinhas pra você e pra Ritinha! — Com a ajuda de seu amigo, Garcia sobe na carroça e puxa o cabo de madeira para conduzir os bois.
—Tem certeza que está bem pra ir? — O amigo pergunta antes de Garcia deixar a cidade.
Garcia dá uma ultima olhada para os amigos ao lado da carroça, ele olha a praça em frente a igreja, tantos rostos conhecidos, moças bonitas, crianças brincando, senhoras contando fofocas enquanto caminham pelas ruas.
—É eu tô bem sim, mas vou sentir saudades nesses dias que estiver fora.
O amigo de Garcia estende o braço para apertar a mão do amigo, então Garcia também estende e aperta a sua mão.
—Vai com Deus amigo. — Ele quase sussurra para Garcia, que balança a cabeça com um sorriso no rosto e os olhos levemente cerrados pelo sol quente.
Todos se afastam da carroça, Garcia põe seu chapéu e então bate com a vara de madeira nos bois que começam a andar para fora da cidade. Os amigos de Garcia se despedem de longe. Ainda com os olhos fitados na direção deles, Garcia só deixa de olhar para trás quando seus bois passam na frente de uma casinha na esquina, fazendo Garcia perder a visão de seus amigos, ele se vira para frente, inspira e pega as cordas para conduzir os bois. Ao sair da cidade, Garcia escuta pela última vez o badalar dos sinos da igreja, ele fecha os olhos e aprecia o som, um som divino que o fez lembrar das vezes que ia a missa com seus falecidos pais. Por um momento, ao relembrar do passado, o som dos sinos o fez lembrar de uma antiga memória, uma memória na qual ele gostaria de deixar para trás, mas por algum motivo, ela voltou a assola-lo. Garcia abre os olhos e cerra seus punhos furioso.
—Diabo.... — Ele resmunga para si mesmo.
De repente uma coruja branca pousa ao seu lado na carroça. Garcia olha para a coruja assustado.
—Tarde.... — Ele espera por uma resposta, perde a postura e dá risada de si mesmo. —Não fala o nome do Diabo que ele aparece, só se você for o Diabo né? — A coruja não responde, apenas olha para Garcia e sai dali voando para longe. —Certo, até logo amiga....
O caminho era longo, ao menos cinco dias até a cidade, com duas paradas em algumas vilas para que Garcia pudesse descansar, porém ele pensou diferente de qualquer outro homem. Em seu bolso Garcia guardava um mapa com uma rota que ele mesmo traçou, um atalho que ele criou de uma cidade a outra, ele chegaria mais rápido na cidade porém, não passaria pelas vilas para descansar, era um risco que ele não se importava em correr, então seguiu a viagem. O dia era quente, a noite era fria, a comida ia acabando conforme os dias passavam, os bois seguiam o caminho cansados, movidos apenas pela esperança de chegarem a cidade o mais rápido possível, quanto ao Garcia, bem o pobre homem se encontrou muitas vezes questuonando sua lucidez, estaria ele perdendo a sanidade pelo calor que torrava seus miolos, ou ao cair da noite ele realmente ouvia aquelas... coisas?
Um silêncio angustiante toma o caminho de Garcia durante a noite, ele acende uma lamparina quando o ultimo resquício da luz do sol desaparece. Já era o terceiro dia da viagem, por achar que o seu caminho o levaria para a cidade em pouco tempo, Garcia não se importou em se empanturrar com pão e carne que lhe deram antes da viagem, e de se embebedar com algumas doses de pinga. Olhando para a lua e perdido em seus pensamentos, Garcia começa a cantarolar para si mesmo, enquanto refletia sobre os seus atos na vida, até por que se ele morresse ali, ele precisaria ter a certeza de que fez algo bom na vida, algo que pudesse apagar seus erros, até os mais imperdoáveis, tantos pensamentos rodando pela sua cabeça, e ele não chegou a uma resposta se quer, tudo isso acabou numa simples palavra, um nome.
—Mas que Diabo! — Ele gritou furioso.
Garcia bate nos bois com a vara esperando que eles andem mais depressa, porem os coitados permanecem na mesma velocidade.
—Diabo! — Ele repete, e no ponto mais obscuro daquela noite, ao pronunciar aquele nome, ele ouve algo do meio da mata.
Um sussurro profundo emerge das sombras;
—Quem me chama? — Tal voz era tão amedrontadora e ao mesmo tempo tão tentadora, como um cantor com sua voz serena e doce, ao mesmo tempo era como ouvir milhares de lamentos desesperados, circulando sua mente, isso tudo num único minuto.
Garcia leva um susto, puxa os bois que param com tudo no meio do caminho. Um silêncio toma conta daquele deserto de terra mais uma vez. Garcia arregala os olhos e segura aquele pedaço de madeira com toda a sua força quase o partindo no meio, seu corpo se tremia de cima a baixo, ele arranja forças para se levantar, mas tamanho era o medo que suas pernas já estavam bambas. Ele enfim se levanta, puxa a lamparina enquanto segura a vara de madeira com a outra mão, então começa a olhar de um lado para o outro. Era como se o mundo estivesse perdido numa escuridão absoluta e Garcia e seus bois eram os únicos seres vivos naquele lugar, por que nem ao menos sons de grilos ou pássaros se escutava naquela terra infernal. Relutante e com o coração quase saindo pelo seu peito de tanto que batia, ele segura a lamparina firmemente e questiona-se sozinho.
—Quem está aí? — Ele sussurra, e sua resposta vem com um silêncio perturbador, mais perturbador ainda era Garcia esperar por uma resposta. —Tudo certo.... — Ele diz imaginando que sua mente estava pregando peças nele, ele lentamente volta para seu assento. —Que engraçado Garcia, olha as coisas que você pensa nesse horário em, mas que Diabo.... — Ele resmunga cerrando os dentes.
Mas agora o som de passos pesados pisando na terra surgem de trás da carroça. Garcia se levanta e aponta a ponta da vara de madeira para a escuridão de trás da carroça, não havia ninguém ali.
—Esquece isso Garcia, esquece isso. — Ele diz para si mesmo, o convencendo de que poderia ser sua mente apenas brincando com sua lucidez ou quem sabe de alguma maneira o próprio Diabo realmente viera o buscar.
Seja lá o que estivesse acontecendo, Garcia escolheu apenas seguir em frente, a sua esperança de chegar a cidade quem sabe no dia seguinte era grande, mas se nem Garcia e seus bois sabiam como sair daquele fim de mundo, quem mais saberia? Tudo o que ele mais queria naquele momento era uma cama quentinha, um banquete, bebida, algumas moças junto de si, e paz, apenas uma noite de paz, era tudo o que precisava tendo em vista que em todo o percurso de sua viagem o coitado não dormiu por mais de vinte ou trinta minutos.
Garcia continuou seguindo aquele caminho de terra com perseverança, quase dormindo ali naquele banco, mas de olhos abertos, atentos a tudo o que estivesse na sua frente, e não muito longe dali, a uns metros de onde sua carroça estava ele vê algo...
—Mas o que? — Ele se questiona cerrando os olhos tentando enxergar o que era aquele ponto de luz ao longe.
Ele continuou andando e andando com sua carroça até chegar naquele lugar tão misterioso.
“Taverna do Ferinno!”
Era isso o que estava escrito na fachada do estabelecimento de tal forma como se tivesse sido escrita as pressas, não atoa as letras eram menores e umas maiores que as outras. O lugar continha duas lamparinas iluminando-o, lá de dentro uma voz graciosa ia surgindo, aquela voz chamava por Garcia que sem pensar duas vezes para com seus bois e com passos apressados entra no bar. O lugar estava vazio, quem cantava lá dentro com um violão levemente desafinado era um homem esguio de olhos profundos, ele tinha poucos fios de cabelo na cabeça, quase um morto vivo aos olhos de qualquer outra pessoa. Ele usa um terno barato que estava com suas mangas arregaçadas. Garcia se aproxima do senhor que tocava seu violão quase de forma despretensiosa, era como se seus dedos simplesmente saltassem de uma corda a outra rapidamente com vida própria, Garcia nunca havia escutado aquela musica antes ela o faz flutuar nos próprios pensamentos e sentimentos, quase o fazendo perder a noção de tempo e espaço. Quando se aproximou do senhor ele percebeu que seus braços tinham alguns machucados, pareciam mordidas em seu braço esquerdo, na sua mão direita ele tinha uma cicatriz que percorria as costas da sua mão, como um risco. O senhor percebe a presença de Garcia que logo abre um sorriso quando o senhor levanta o rosto encarando Garcia de forma ameaçadora.
—Estamos fechados. — Ele diz com sua voz grave.
—Meu amigo por favor, se não se importar poderia me conceder um pouco de.... — Sem que pudesse terminar de falar ele é interrompido pelo senhor.
—Estamos fechados. — Ele repete.
—Eu entendi, mas... eu tenho um pouco de prata comigo. — Garcia tira algumas moedas do bolso.
O senhor da uma olhada para as moedas na mão de Garcia.
—Quanto? — O senhor questiona.
—São três moedas, sei que é pouco, mas é o que eu tenho. — Garcia diz quase se fechando de vergonha.
—Se quer mesmo uma bebida vai ter que me dar algo a mais.
—O que?
O senhor deixa o violão encostado na cadeira, ele se levanta com a ajuda de uma bengala e vai até o balcão.
—Uma boa história. — O senhor diz puxando um copo e uma garrafa de bebida debaixo do balcão. —Não é todo dia que um forasteiro aparece por aqui, então me diga de uma vez de onde você veio, e o que faz aqui.
Garcia se senta no banco de madeira.
—Bem eu, eu vim de..., eu vim de.... — Garcia levanta sua mão direita e começa a apontar para varias direções diferentes. —Eu, não me lembro....
—É assim mesmo, na calada da noite se você não tiver um jeito de trazer sua mente para a realidade você acaba se perdendo no barulho dos pensamentos, você vai lembrar daqui a pouco.
—Eu acho que posso fazer algo pra descontrair.
—Pode cantar no meio do caminho.
O senhor enche o copo com a bebida e o entrega para Garcia que bebe tudo de uma vez.
—Então, o que um homem como você faz aqui nesse fim de mundo? — O senhor questiona Garcia se sentando ainda a sua frente.
—Eu estou levando um sino de igreja para São Paulo. — Garcia começa a batucar o pé no banco em que sentava sentindo uma ansiedade repentina tomando seu corpo.
—Está fora do caminho. — O senhor avisa colocando mais um pouco de bebida no copo de Garcia.
—Eu sei, eu estou no meu próprio caminho na verdade. — Garcia levanta a palma da sua mão sinalizando que o copo até a metade já era mais que o suficiente para ele.
—Trilhar seu próprio caminho pode ser perigoso, não sabe o que se esconde atrás desse mato....
—O que se esconde atrás desse mato?
—Você mesmo, esse é o maior mal que pode encontrar no caminho da noite. — Por um momento por estar nas sombras os olhos daquele senhor pareciam sumir, aquilo só deixa Garcia mais angustiado, havia algo naquele lugar que não o deixava bem. —Trabalha a muito tempo com isso? Viagens, encomendas....
—Faz uns anos, acho que cinco ou seis anos, era o mesmo ramo que meu pai trabalhava. — Garcia começa a cutucar a mesa como se fosse um grande piano.
—E o que houve com ele?
—Ele faleceu...
—Pelo o que?
—Morreu de intoxicação. — Garcia começa a arranhar a madeira do balcão com uma certa agonia.
—Sério?
—Sim, foi quando eu era criança.
—Deve ter sido difícil. — Mais uma vez ele enche o copo de Garcia com a bebida.
—Na verdade foi bom, sabe? — Garcia para por um momento para prestar atenção no que ele havia dito. —Digo... foi difícil, eu quero dizer que... ele não era o melhor pai, sabe? Nem o melhor marido.
—Rapaz você esconde muita coisa aí dentro. — O senhor guarda a bebida junto a mais umas quatro garrafas de vidro logo atrás dele, em uma prateleira praticamente vazia.
—Você nem imagina, acho que ninguém nunca me conheceu totalmente. — Garcia dá um gole que o refrescou até a alma, era delicioso saborear o gosto do álcool mais uma vez.
—Nem familiares próximos, sua mãe?
—Não, acho que nem mesmo ela me conhecia tão bem.
—Que tristeza em rapaz, mas e quanto a você? Sabe tudo sobre você?
—Eu sei, sei sim....
—Não me parece saber mesmo, as vezes nos negamos a aceitar algumas verdades sobre nós mesmos. — O senhor se debruça sob o balcão. —Isso não é um tipo de dívida para a igreja né?
—Não, se fosse divida eu deveria ter pago a um bom tempo.
—Então você não é muito de ir à igreja?
—Deixei de ir logo depois da morte do meu pai, não sinto que eu sou bem-vindo lá.
—Na casa de Deus? Por que acha isso?
—É difícil dizer, o povo é mal-encarado, dá até medo. — Os olhos de Garcia rondam o lugar. —Mas e o senhor? A quanto tempo vive aqui?
Quando Garcia bateu com seu pé no banco mais uma vez ele sentiu uma dor percorrendo o seu pé, a dor angustiante cravando em sua alma e o fazendo ranger os dentes evitando de dar um grito.
—Ah Garcia, esse lugar é diferente de qualquer outro, eu perambulava essas terras como você, não me recordo de meu destino, mas me recordo de parar no meio do caminho e de acabar esquecendo de tudo o que já tinha passado, minha vida, meu nome, tudo se foi na minha mente, eu encontrei esse salão caindo aos pedaços e fiquei aqui onde eu estarei para sempre.
—Para sempre? Diabo... eu acho que... acho que já é hora de ir. — Garcia diz se ajeitando para se levantar.
—Tem certeza?
—Eu não quero perder muito tempo jogando conversa fora, preciso levar esse sino para a cidade.
—Com esse pé machucado?
—Meu pé? Ah é mesmo, por um minuto tinha até esquecido.
—Tem certeza de que vai seguir com o pé desse jeito?
—Já nem dói mais. — Quando Garcia pisa no chão ele sente uma dor que parece subir por toda a sua perna. —Que Diabo.
—Ei garoto, se vai continuar a sua viagem então só um aviso, já é noite, toma cuidado com esse nome.
—Diabo? Já é o segundo a me dizer isso.
—Pois é, mas agora é mais que sério, o caminho vai ser perigoso, tome cuidado com esse nome e siga o caminho em paz.
—Claro, eu vou me recordar disso.
—Nos veremos no futuro? O senhor puxa um trapo velho e começa a limpar o balcão.
—Quem sabe?
Garcia sai da taverna e é comtemplado com um silêncio. Garcia limpa a garganta seca, olha para o alto e por um segundo observa o infinito céu estrelado, ele se vira e observa aquela imensidão de terra, sem uma única alma viva diante de seus olhos, e aquilo era o que ele recebia do deserto, o silêncio, a solidão....
—Vamos logo. — Ele diz para si mesmo e para seus bois que parados no mesmo lugar saem em disparada quando vem Garcia já pegando o pedaço de madeira de seu banco.
A noite se prolongou por muito tempo, horas e horas andando sem rumo pelo o que parecia. Até aquela altura o som do silêncio chegava a ser ensurdecedor para os ouvidos de Garcia, que cambaleava de um lado ao outro do banco do cocheiro, ele põe suas mãos em seus ouvidos sentindo que aquele som começa a corroer sua mente. Garcia começa a cantarolar, a mesma musica que o senhor cantava no bar, por um momento aquele barulho some e uma verdadeira calmaria surge, até mesmo os bois parecem sentir a leveza que aquela canção trazia e logo começam a andar mais rápido. As estrelas brilham como enormes faróis no céu, as nuvens se dissipam e a luz da lua por um momento ilumina Garcia e seu caminho. O tom de sua voz se eleva a cada canto, e ia cada vez mais e mais alto, até que inundado por sua sanidade levemente distorcida ele grita, grita de ódio, tristeza, por todo o seu sofrimento e sua dor. As nuvens cobrem a lua mais uma vez e as sombras abraçam Garcia novamente o envolvendo com a escuridão. Garcia cai com tudo em seu banco e remói sua dor ali mesmo.
—Eu não deveria ter saído de casa, não deveria, não deveria, não deveria, não deveria, não deveria, não deveria, não deveria, não deveria, não deveria! — Ele repete sentindo que seu eu interior berrava para sair de seu corpo.
Garcia passa seus dedos por entre o seu cabelo crespo e se põe a uma postura quase fetal na carroça, lamentando sua situação terrível a qual ele mesmo havia se colocado.
—Diabo! Ele gritou de tal forma que suas cordas vocais quase estouram.
Garcia já sofrera o bastante naquele pedaço de terra infernal, pagando seus pecados um a um, seria a hora de seu sofrimento enfim acabar. No momento em que disse aquele nome, uma coisa pareceu cair do céu, logo à frente da carroça de Garcia, o homem se espanta ao ouvir um som que não fosse o dele e o dos bois, então ele puxa os animais e para a carroça. Ele puxa a lamparina e vai até a frente da carroça ver o que era. Uma coruja havia caído do céu, ela estava morta. Garcia se ajoelha, pega a coruja e a põe só suas pernas, ele acaricia o pássaro com o polegar e então passa o dedo sob o peito do animal, seu coração já não batia mais.
—O que aconteceu com você? — Garcia questionou.
—Coma. — Uma voz surgiu do meio da mata.
Garcia solta o pássaro e cai para trás junto de sua lamparina.
—Quem está aí? — Ele grita. —Mostre-se!
—Quem mais seria? — A voz questiona.
Naquele momento a lua se põe a mostra no céu, e por um momento ela iluminou aquilo que estava à frente de Garcia. Logo ao lado de uma arvore seca havia um homem. Seu longo cabelo loiro cobre parte de seu rosto, ele usava óculos escuros arredondados, estranho por estar usando aquilo numa noite tão escura. Seu cabelo embora cobrisse boa parte do rosto, não escondia seu sorriso largo com seus dentes esbranquiçados. Ele é branco como folha de papel, alto e esguio vestia um terno branco luxuoso com alguns detalhes avermelhados como a camisa a qual ele usava por debaixo do terno, usava também um enorme chapéu branco, parecia ser um homem de muito poder pelas suas vestimentas e utensílios. Ele amarra seu cabelo lentamente, agora deixando visível alguns tons antes não tão visíveis de seu rosto, tais como o fato de ter uma cicatriz que corta o seu olho esquerdo e os brincos de prata na orelha esquerda.
—Não tenha medo. — A doce voz faz Garcia se tremer ainda sentado ao chão.
Era uma presença tão amedrontadora a tal ponto que o próprio cenário se modificava ao redor de Garcia. As poucas plantas que tinham ao seu redor murchavam com tal presença, se tornando apenas pó sob a terra que de uma hora para a outra ficou húmida, como se uma forte chuva tivesse acabado de assolar aquele deserto. Um trovão surge dos céus, de um lugar donde nem havia nuvem, mas logo em seguida como espumas se formando num copo de cerveja, as nuvens se formam no céu, carregadas de chuva e trovões ferozes que iluminavam ambas as figuras paradas no caminho de terra.
—Quem é você? — Garcia se rasteja mais para trás.
—Você sabe, levante-se. — Aquele homem anda lentamente até Garcia, tendo uma frente fria surgindo ao ar a cada passo que ele dava, congelando seus ossos, tamanho era o medo que até mesmo os bois de Garcia se afastam mugindo. —Por que me chamou tanto?
—Eu, eu não o chamei.
—Chamou sim.... — Sua voz arrastada percorre o ar e adentra a mente já perturbada de Garcia.
—Eu não queria.... — Garcia diz ressentido, lembrando de quando seu amigo lhe disse sobre dizer aquele nome durante a noite.
—Mas eu estou aqui agora, e preciso ter uma conversa com você. — Aquela figura gigantesca se agacha ficando cara a cara com Garcia.
Ele estica a mão para que pudesse ajudar Garcia a se levantar, mas Garcia se afasta ainda com medo.
—Comigo? Por que? — Garcia questiona, cravando suas unhas na terra enlameada.
—De tantos mundos e tantas galáxias espalhadas por essa imensidão você é uma das poucas pessoas a qual eu buscaria pessoalmente.
—Por que eu?
—Você me chamou não chamou? E não acho que tenha sido apenas coincidência, nossos destinos estão ligados de alguma forma.
—O que você quer comigo?
—Uma boa história, e sua total sinceridade. — O homem se levanta vendo que Garcia não daria sua mão, ele caminha para alguns metros à frente da carroça, põe as mãos na cintura e observa a paisagem pouco iluminada com a luz dos relâmpagos. —Lembra-se a quanto tempo está aqui? — Ele questiona.
—Eu..., não me lembro. — Garcia abaixa a cabeça.
—Sabe para onde está indo? De onde veio?
—Não.
—Mas você se recorda de seu passado? O mínimo que seja.
—Por que quer saber do meu passado?
—Você se lembra daquela noite? A noite em que viu o monstro pela primeira vez.
—Lembro um pouco, eu me lembro do que eu sentia.
—Eu também me lembro, de certa forma eu estava naquele monstro, e de certa forma eu também estava junto com você, sentindo e consumindo o medo que você sentia.
—Eu me livrei do meu monstro.
—Não. — Ele faz uma pausa, se virando na direção de Garcia, tira seu chapéu e joga para a esquerda. —Você se livrou de um dos monstros, mas a verdade é que tanto tempo se passou desde que adentrou a escuridão, que agora já nem sabe mais onde começam as sombras e onde termina o verdadeiro Garcia. — O homem se vira para o horizonte e retira seus óculos.
—Eu sei quem eu sou, de verdade.
—Sabe mesmo? — O homem se vira revelando seus olhos enormes e amarelos como os de uma serpente. —Bem, não sou eu quem está preso nesse mar de terras sem fim, sem saber de onde veio, para onde vai, sem saber meu nome.
—Eu sei meu nome! Ele grita ainda no chão.
—E qual é? — O moço bem trajado questiona se agachando e se inclinando lentamente até a sua direção como se fosse um animal prestes a atacar a sua presa.
O homem fica em silêncio, encarando os hipnóticos olhos amarelos da própria serpente a qual se encontrava na sua frente.
—Diga seu nome.... — Ele sussurra.
—Diabo.... — O homem lamenta abaixando sua voz.
—Diga homem do sino, qual seu nome? Quem são seus pais? De onde você veio? O que você fez ao seu passado?
—Eu não lembro.... — Ele sussurra.
—Diga! — O Diabo cresce seu tom de voz.
—Diabo, me deixa em paz! — O homem deita no chão e começa a tremer, quase convulsionar tentando tirar as palavras de sua língua, tentando relembrar seu passado, seu nome e o nome de seus amigos, seus antigos amores, mas nada vinha à sua mente.
—Eu o deixo, se é o que quer, me chamaste tanto que eu imaginei por um momento que talvez quisera um amigo, uma companhia, sabe como o deserto pode ser cruel conosco e com nossa mente. — O Diabo pega o corpo da coruja ainda jogado ao seu lado, ele pressiona o peito do pássaro e o entrega ao homem. —Sei que dói ficar aqui, fisicamente, psicologicamente, é visível que está com fome, sede, e eu sei que você daria qualquer coisa no mundo para que pudesse morrer agora mesmo, mas eu não vou deixar.
—E o que quer que eu faça? — O homem questiona.
—O que você mais deseja nesse momento? — O Diabo se senta na lama a frente do homem.
—O que eu mais desejo?
—Qualquer coisa, vida eterna, ouro, qualquer coisa. — O Diabo puxa um pouco de lama do chão e banha o corpo da coruja com ela.
—Eu não quero nada de você.
—Mentira..., e você sabe que é mentira. — Seu sorriso amedrontador sumiu por alguns segundos.
—Eu não quero nada.
—Eu te conheço muito bem, estive com você quando deu seus primeiros passos, quando conheceu seu primeiro amor, estive lá no seu batismo, eu sempre estive com você, a verdade é que ninguém conhece você melhor do que eu.
—O que eu faço?
—Quer sair desse lugar? Gostaria de ter dinheiro, comida, mulheres, uma boa vida?
—Sim.... — O homem diz cabisbaixo, quase envergonhado.
—Você quer viver a vida eterna, sem sentir a dor do passado e de suas cicatrizes?
—O que eu devo fazer?.... — Ele questiona o Diabo passando a palma de sua mão sob o seu braço, numa área onde havia um corte antigo já cicatrizado.
—Está com fome não está?
—Estou....
—Então coma e durma. — O Diabo entrega o pássaro morto nas mãos do rapaz.
—E então?
—Então você verá, fara sua história no mundo com todo o seu poder, com reconhecimento de todos.
—E quanto a história de entregar minha alma a você?
—Você sabe o que tem que saber, agora depende de você aceitar minha proposta ou não, caso contrário, se ajoelhe e ore. — O Diabo põe suas mãos por debaixo das mãos do homem do sino e lentamente empurra suas mãos na direção do homem.
—Comer? Assim? — Ele questiona assustado.
—Coma.... — Os olhos amarelos brilham na escuridão como dois fósforos quentes, mas em um piscar de olhos aquele ser some, se dissipa no ar.
O homem começa a olhar para todos os lados assustado sem saber o que havia acabado de acontecer. Ele se levanta cansado e volta até a carroça com o corpo do pássaro em mãos. Nos céus os relâmpagos que surgiam como enormes fachos de luz violentos percorrendo o céu agora sumiam. Junto de um último trovão que explode os céus, uma chuva fria se inicia. O homem sentado na carroça olha para o céu reflexivo, cansado, e em seguida direciona os olhos para o pequeno corpo em seus braços. A chuva vai aumentando, aumentando e aumentando.
O sol queima seus olhos, o som de abutres percorrendo os céus é nítido. Desacordado o homem abre seus olhos sem saber o que havia acontecido. A terra adentra suas unhas deixando uma sensação desconfortável. O cheiro, o sentimento que sentia era estranho, diferente. Ele se levanta lentamente e se depara com uma cidade a alguns quilômetros a sua frente. Não muito longe de onde estava um moço de terno preto vem até onde ele está. O moço carrega uma bengala em sua mão direita.
—Olá, precisa de ajuda senhor? — O moço questiona se inclinando com medo do homem.
O homem fica em silêncio ainda olhando para o seu redor. A carroça em que estava, parecia ter tombado, os bois estavam deitados a alguns metros da carroça, abutres se aproximam de seus corpos prontos para os devorarem. Do seu lado direito, o sino se encontrava intacto.
—O senhor..., espera esse é o sino da nossa igreja? — O moço se aproxima do sino. —O senhor é o Garcia?
E como um estalo, as suas memórias voltam.
—Sim.... — O homem sussurra com uma voz cansada.
—Que Diabo.... — Ele diz assustado.
—Não diga isso, não diga.... — Garcia cai de joelhos no chão.
—Ei espere, tome cuidado. — O moço vai até Garcia e o ajuda a se levantar. —Consegue andar? Seu pé parece estar machucado.
Garcia olha para seu pé, uma marca preta o cobria, já estava necrosado, o sangue já nem se expelia mais.
—Não, acho que não... — Ele sussurra.
—Certo, use isso então. — O moço entrega a bengala a Garcia.
Os dois caminham até a cidade conversando.
—Veio de muito longe não veio? — O moço perguntou, mas não recebeu respostas. —Não se preocupe, vamos cuidar desse pé e você vai receber um bom dinheiro.
—Eu só quero comer um pouco, descansar. — Garcia diz com sua voz sofrida.
—Não se preocupe, vai conseguir a paz aqui.Os dois continuam a caminhada, Garcia recebe o que queria na cidade, o dinheiro que ele ganha é uma quantia que nem mesmo ele imaginava que teria. Enfim Garcia pode se deitar em uma cama quente para descansar, porém com a chegada da noite ele era atormentado por vozes, e imagens perturbadoras de sua cabeça, mas não importava, agora ele estava bem. Numa noite, sozinho na cama de hospital, logo depois de se deleitar em comida e bebida ele é atormentado pela tristeza e lentamente começa a se relembrar de fatos do passado, com um arrependimento pesando em sua mente ele diz.
—Diabo....
—Olá Garcia....
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Quem tem medo do Diabo?
Historia CortaGarcia é um homem que está viajando a trabalho, levando um sino de igreja de uma cidade a outra, o caminho que Garcia segue é longo, dias de viagem, porém conforme os dias passam, Garcia começa a receber visitas sobrenaturais que o atormentaram até...