O Leão ruge

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Quando finalmente todos estavam acordados, Lúcia contou a história pela quarta vez. Nada podia ser mais desanimador do que o silêncio que se seguiu.
– Não consigo ver nada – declarou Pedro, depois de ter olhado tão fixamente que os olhos lhe doíam. – Está vendo alguma coisa, Su?
– Claro que não! – disse Susana, mal-humorada. – Pois se não há nada para ver! Ela anda é sonhando. É melhor você dormir, Lúcia.
– Só queria que vocês viessem comigo – disse Lúcia, com voz trêmula. – Porque... porque, se não quiserem, terei de ir sozinha.
– Não diga tolice – resmungou Susana. – Você sabe muito bem que não pode ir sozinha.
– Se ela tiver mesmo de ir, eu vou com ela – disse Edmundo. – Da outra vez quem tinha razão era ela.
– Sei disso – replicou Pedro – , e pode até ser que ela estivesse certa também hoje de manhã. A verdade é que aquela idéia do desfiladeiro foi um passo em falso. Mas... a esta hora da noite... E por que Aslam iria ficar invisível para nós? Nunca esteve!... Não é coisa dele! Que diz você, N.C.A.?
– Não digo nada – respondeu o anão. – Se todos forem, também vou. Se se dividirem, fico com o Grande Rei. Só assim poderei cumprir o meu dever para com ele e para com o rei Caspian. Mas, se querem o parecer de um anão ignorante, acho que não há grandes possibilidades de encontrarmos o caminho à noite, uma vez que nem de dia demos com ele. E não gosto nada desses leões milagrosos, que sabem falar mas não falam, que são bons mas não mostram isso, e que, ainda por cima, são enormes e aparecem de repente, e não há quem consiga vê-los. Para mim, isso tudo é lorota – na minha modesta opinião.
– Está batendo com a pata no chão para andarmos depressa – disse Lúcia. – Tenho de ir logo... pelo menos eu vou!
– Você não tem o direito de impor a sua vontade. Afinal, somos três contra um – declarou Susana – e você é a caçula.
– Vamos embora! – disse Edmundo, impaciente. – É claro que temos de ir; enquanto não formos, não ficaremos sossegados.
Estava firmemente decidido a apoiar Lúcia, mas a idéia de perder a noite lhe era incômoda; vingava-se então fazendo tudo com má vontade.
– Então, a caminho! – disse Pedro, com um ar cansado, passando o braço pela correia do escudo e colocando o elmo. Em outra circunstância, não deixaria de dizer a Lúcia uma palavra amável, mesmo porque era sua irmã favorita, e sabia também que ela não tinha culpa do que estava acontecendo. Mas, ao mesmo tempo, não podia deixar de sentir-se um tanto aborrecido com ela. Susana foi a pior.
– E imaginem se agora eu começasse a fazer a mesma coisa que Lúcia! Podia ameaçar de ficar aqui, mesmo que todos fossem embora. Acho até que vou fazer isso.
– Obedeça ao Grande Rei, Real Senhora, e vamos partir – disse Trumpkin. – Já que não me deixam dormir, tanto faz caminhar como ficar aqui conversando.
Puseram-se a caminho. Lúcia ia à frente, mordendo os lábios, dominando-se para não dizer a Susana tudo o que pensava dela. Mas, logo que encontrou o olhar de Aslam, foi-se a irritação. Ele avançava uns trinta metros à frente deles. Os outros tinham de guiar-se apenas pelas indicações de Lúcia, porque não ouviam nem viam Aslam. Suas grandes patas aveludadas pousavam na relva sem o menor barulho.
Aslam levou-os direitinho às árvores dançantes (se dançavam naquele momento é que ninguém sabe, pois Lúcia não tirava os olhos do Leão, e os outros não tiravam os olhos dela) e seguiu em direção ao desfiladeiro.
– Com mil bombas! – resmungou Trumpkin. – Espero que essa brincadeira toda não vá acabar numa escalada ao luar, com pernas e braços quebrados.
Durante muito tempo, Aslam manteve-se no cimo do desfiladeiro, mas, quando apareceu um tufo de árvores à direita, virou para lá e desapareceu entre elas. Lúcia teve um sobressalto, pois lhe pareceu que ele sumira no abismo. Não teve muito tempo para pensar. Apressou o passo e desapareceu também no arvoredo. Podia ver agora uma vereda íngreme que se contorcia entre penhascos, conduzindo ao desfiladeiro. Aslam avançava por lá. Lúcia bateu palmas de alegria e começou a descer atrás dele. Ouviu os outros gritarem:
– Lúcia! Pare! Espere, pelo amor de Deus! Você está na beirada do abismo! Volte!
Daí a pouco era Edmundo que dizia:
– Oh, ela tem razão! Está tudo bem. Há um caminho.
Quando Edmundo conseguiu alcançá-la, perguntou, excitado:
– Olhe, ali, uma sombra mexendo!...
– É a sombra dele – respondeu Lúcia.
– Acho que você tem razão, Lu. Como é que não vi Aslam antes? Mas onde ele está?
– Ao pé da sombra, evidente! Não está vendo?
– Bem... por um instante acho que vi qualquer coisa. Está uma luz tão esquisita.
– Para a frente, rei Edmundo – veio lá de trás e lá de cima a voz de Trumpkin.
E ainda mais atrás e mais acima Pedro dizia:
– Vamos, Susana, dê a mão. Deixe de enjoamento. Qualquer criança seria capaz de descer por aqui.
Passados alguns minutos, estavam no fundo do desfiladeiro, com a água rugindo-lhes ao ouvido. Avançando cautelosamente, como se fosse um gato, Aslam atravessou o rio, saltando de pedra em pedra. No meio da corrente parou, baixou-se para beber e, ao levantar a cabeça, sacudiu a juba orvalhada, virando-se para eles. Dessa vez Edmundo pôde vê-lo.
– Oh, Aslam! – gritou, precipitando-se a seu encontro. Mas o Leão deu meia-volta e começou a subir a encosta do outro lado do Veloz.
– Pedro, Pedro! – gritou Edmundo. – Você o viu?
– Vi, vi qualquer coisa. Mas está tudo tão confuso com este luar. Vamos em frente, e três vivas para Lúcia. Já nem me sinto tão cansado.
Sem hesitar, Aslam foi subindo à esquerda. Tudo naquela caminhada era estranho, como se acontecesse em sonho: o rio bramindo, a relva úmida, os penhascos cintilantes... Mais extraordinário que tudo, a marcha silenciosa do grande animal. Agora, todos o viam, menos Susana e o anão.
Outro atalho, tão íngreme como o primeiro, ziguezagueava por novos precipícios, muito mais altos do que os anteriores. Longa e difícil foi a subida. Felizmente a lua brilhava bem sobre a garganta, de modo que nenhum dos lados estava na sombra.
Lúcia estava quase desfalecendo quando a cauda e as patas traseiras de Aslam desapareceram no alto. Com um esforço final, arrastou-se atrás dele e encontrou-se, ofegante e trêmula, no cimo da colina que tinham tentado alcançar desde a partida do Espelho d’Água. Uma vasta encosta alongava-se suavemente por cerca de um quilômetro, coberta de espinheiros e relva e, de quando em quando, salpicada de grandes rochedos, brancos ao luar, desaparecendo depois numa confusão de árvores. Era a colina da Mesa de Pedra, que Lúcia conhecia bem. Com um tilintar de cotas de malha, os outros subiram atrás dela, continuando depois atrás de Aslam.
– Lúcia! – chamou Susana, baixinho.
– Que é?
– Agora estou vendo Aslam. Desculpe-me.
– Não tem importância.
– Mas sou muito pior do que você pensa. Acreditei que era ele... acreditei ontem mesmo... quando ele não queria que fôssemos pelo pinhal. E acreditei também hoje, quando você nos acordou. Isto é... no fundo acreditei... Ou podia ter acreditado, se quisesse... Mas estava com tanta pressa de sair da floresta... e... não sei como vou explicar. O que vou dizer a ele agora?
– Talvez não precise dizer mais nada.
Não tardou que se encontrassem junto das árvores e vissem através delas o Monte de Aslam, construído sobre a Mesa de Pedra, já tempos depois do tempo deles.
– A guarda não está no posto – resmungou Trumpkin. – Já deviam ter barrado a nossa marcha...
– Psiu! – fizeram os outros quatro, porque Aslam parará e, tendo-se voltado, olhava para eles com um aspecto tão majestoso que todos ficaram contentes, tão contentes quanto é possível a pessoas que sentem medo, e tão cheios de medo quanto é possível a pessoas que se sentem contentes. Os rapazes avançaram. Lúcia afastou-se para lhes dar passagem. Susana e o anão recuaram.
– Aslam! – exclamou Pedro, pondo um joelho em terra e levantando a pesada pata do Leão até tocar com ela no rosto. – Estou tão contente... e tão triste! Desde que partimos que os tenho trazido por caminho errado, e ontem foi pior do que nunca.
– Meu filho! – disse Aslam.
Depois voltou-se para Edmundo e deu-lhe as boas-vindas:
– Muito bem! – foram as suas palavras. – Depois de um silêncio terrível, disse com voz grave: – Susana! – Susana não respondeu e pareceu aos outros que estava chorando. – Você deixou que o medo a dominasse. Venha, deixe que sopre sobre você. Esqueça seus receios. Está melhor agora?
– Um pouco, Aslam – disse Susana.
– Pois bem! – continuou Aslam, em voz tão forte que quase parecia um rugido, fustigando os flancos com a cauda. – Onde está aquele anãozinho, esse famoso espadachim e arqueiro, que não acredita em leões? Aproxime-se, filho da Terra, venha aqui\ – A última palavra já não parecia um rugido, era quase um rugido de verdade.
– Com mil demônios! – murmurou Trumpkin, com a voz sumida.
As crianças, que conheciam Aslam o suficiente para perceber que ele gostava muito do anão, não ficaram impressionadas. Mas com Trumpkin, que nunca tinha visto um leão, e muito menos aquele, o caso foi diferente. Fez a única coisa sensata que poderia fazer naquele momento. Em vez de fugir, cambaleou na direção de Aslam, que se lançou sobre ele.
Você já viu alguma vez uma gata com o filhote entre os dentes? Pois foi muito parecido. O anão,
encolhido num feixe miserável, pendia entre os dentes de Aslam, que o sacudia. A pequenina armadura tilintou como se fosse um guizo e em seguida... zztl... o anão foi atirado para o ar. Se estivesse na cama não estaria mais seguro, mas ele não se sentia assim. Ao cair, as enormes patas aveludadas envolveram-no como se fossem braços de mãe e depuseram-no no chão (com a cabeça para cima e os pés para baixo).
– Filho da Terra, seremos amigos? – perguntou Aslam.
– S... S... Sim! – respondeu o anão, ainda ofegante.
– Bem, não tarda que a Lua fique encoberta. Vejam como a aurora está rompendo. Não temos tempo a perder. Depressa, para o Monte! – disse Aslam.
O anão ainda não conseguia dizer uma palavra, e ninguém se atreveu a perguntar se Aslam iria com eles. Desembainharam as espadas, saudaram o Leão e, voltando-se com um tinir de armaduras, desapareceram na luz indecisa da manhã. Lúcia reparou que a expressão de cansaço lhes desaparecera do rosto, e tanto o Grande Rei como o rei Edmundo pareciam agora mais homens do que meninos.
As meninas, junto de Aslam, ficaram olhando até eles se perderem de vista. O dia estava clareando. No oriente, perto da linha do horizonte, Ara-vir, a estrela da manhã de Nárnia, brilhava como um pequeno sol. Aslam, que parecia muito maior, levantou a cabeça, sacudiu a juba e rugiu.
O som, a princípio grave e vibrante como o de um órgão que se começa a tocar em nota baixa, foi-se elevando e tornando mais forte, até fazer vibrar a terra e o ar. Partindo da colina, espalhou-se pelo país todo. No acampamento de Miraz, os homens acordaram, entreolharam-se assustados e precipitaram-se para as armas. Lá embaixo, no Grande Rio, onde o frio era intenso naquela hora, as cabeças e os ombros das ninfas e a grande cabeça barbuda e coroada de junco do deus do rio emergiram da água. Mais longe, em todos os campos e nos bosques, as orelhas atentas dos coelhos saíram das tocas, as aves sonolentas retiraram as cabeças de debaixo das asas, as corujas piaram, as raposas ganiram, os porcos-espinhos grunhiram, as árvores estremeceram. Nas cidades e aldeias, as mães, com olhos rasgados de espanto, apertaram os filhinhos ao peito, os cães latiram, os homens levantaram-se às pressas em busca de uma luz. Muito ao longe, na fronteira norte, os gigantes da montanha espreitaram pelos portões sombrios de seus castelos.
O que Lúcia e Susana viram foi uma coisa indefinida e escura que avançava para elas dos quatro pontos cardeais. Pareceu-lhes a princípio um nevoeiro negro e rastejante, depois ondas enormes de um mar negro crescendo, até que por fim compreenderam que era a floresta em marcha. Todas as árvores do mundo pareciam precipitar-se para Aslam. Mal se aproximavam, no entanto, já não eram árvores. Quando se juntaram ao redor dele, fazendo mesuras e reverências e acenando com seus braços longos e finos, o que Lúcia viu foi uma multidão de formas humanas. Pálidas bétulas-meninas balançavam a cabeça; salgueiros-mulheres afastavam os cabelos do rosto ensimesmado para olharem Aslam; faias majestosas adoravam-no imóveis; e havia carvalhos felpudos, olmos esguios e melancólicos, azevinhos desgrenhados (eles próprios escuros, mas suas mulheres lindas, enfeitadas com frutinhas), e as alegres sorveiras. Todos se inclinavam e se erguiam de novo aos gritos de “Aslam, Aslam”, nas suas vozes variadas: roucas, rangentes ou ondulantes.
A multidão era tão densa e o bailado tão rápido (porque de novo as árvores começaram a bailar), que Lúcia ficou tonta. E nunca chegou a perceber de onde vieram os bailarinos, que em breve cabriolavam por entre as árvores. Um deles era um jovem, vestido com uma pele de corça e trazendo uma coroa de parreira nos cabelos encara-colados. Se não fosse a expressão selvagem que o animava, o rosto teria sido quase belo demais para um rapaz. Na presença dele, sentia-se, como disse Edmundo dias mais tarde, ao vê-lo:
– Aí está um sujeito capaz de fazer qualquer coisa!...
Parecia ser conhecido por muitos nomes, dentre os quais Bromios, Bassareus e Áries. Acompanhava-o um grupo de moças, tão estouvadas quanto ele. E, coisa estranha, por fim apareceu até alguém montado num burro. Todos se puseram a rir e gritar:
– Euan, euan, ê-oooi!
– Isto é uma brincadeira, Aslam? – perguntou o jovem.
E bem podia ser. Mas cada um parecia ter uma idéia diferente sobre do que estavam brincando. Era muito semelhante a cabra-cega, só que se comportavam como se todos tivessem os olhos vendados. Lembrava o jogo do chicote-queimado, mas nunca ninguém encontrava o chicote. E ficou impossível definir a brincadeira quando o homem velho e imensamente gordo, montado no burro, de repente começou a gritar: “Bebidas! Hora das bebidas!,” e pulou do burro. Os outros voltaram a colocá-lo em cima do animal, enquanto este, julgando-se num circo, fazia exibições sobre as patas traseiras. Ramos de videira iam aparecendo em profusão cada vez maior. Eram videiras mesmo, que se enroscavam pelas pernas do povo da floresta. Lúcia levou a mão à cabeça para puxar os cabelos para trás e verificou que puxava um ramo de videira. O burro também estava envolto em vides e tinha a cauda toda emaranhada. De suas orelhas pendia alguma coisa escura. Lúcia olhou atentamente e viu que era um cacho de uvas. E, logo em seguida, quase nada restava do burro: só havia cachos, da cabeça aos pés.
– Bebidas! Bebidas! – gritava o velho.
Todos se puseram a comer, e tenho certeza de que você nunca provou uvas tão boas: firmes e rijas por fora, mas que explodiam numa fresca doçura quando postas na boca. Eram daquelas uvas que Susana e Lúcia nunca se cansavam de comer e que raramente tinham comido antes. Havia uvas aos montes, mais do que se poderia desejar, e absolutamente nada de boas-maneiras. Ecoavam gritos e gargalhadas, até que de repente sentiram que a brincadeira (fosse ela qual fosse) e a festa tinham chegado ao fim. Sentaram-se cansados, voltados para Aslam, à espera de ouvir o que ele ia dizer. Nesse momento, o sol começou a despontar. Lembrando-se de algo, Lúcia disse para Susana:
– Já sei quem eles são!
– Eles, quem?
– O rapaz de expressão selvagem é Baco; o velho é Sileno. Não se lembra de que o Sr. Tumnus nos falou deles... há muitos anos?
– É mesmo, é verdade, mas, Lu...
– Mas o quê?
– Se Aslam não estivesse aqui, não me teria sentido lá muito segura com Baco e suas estouvadas companheiras.
– Nem eu!

Príncipe Caspian | As Crônicas de Nárnia IV (1951)Onde histórias criam vida. Descubra agora