Aslam abre uma porta no ar

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Ao ver Aslam, os soldados telmarinos ficaram lívidos, seus joelhos começaram a bater, e muitos caíram de cara no chão. Nunca tinham acreditado em leões, e a descrença aumentava ainda mais seu terror. Os próprios anões vermelhos, que sabiam que vinha como amigo, ficaram boquiabertos e mudos. Alguns dos anões negros, que tinham tomado o partido de Nikabrik, correram a esconder–se. Os animais falantes, porém, reuniram–se todos à volta do Leão. Alegres, rosnavam, guinchavam, relinchavam, ora acariciando o Leão, roçando–se nele, farejando–o delicadamente, ora andando de um lado para outro, por entre suas pernas. Se alguma vez você já viu um gatinho fazendo festas a um cachorro grande, no qual confia, poderá imaginar o que foi aquilo. Então Pedro, acompanhado de Caspian, abriu caminho por entre a bicharada.
– Permita que me apresente, Senhor! – disse Caspian, ajoelhando e beijando a pata do Leão.
– Bem–vindo seja, príncipe – disse Aslam. Sente–se bastante forte para reinar em Nárnia?
– Bem, não sei – respondeu Caspian. – Não passo de um garoto.
– Muito bem! – replicou Aslam. – Se dissesse que tinha a certeza, seria prova de que não estava apto a reinar. Por isso, abaixo de mim e do Grande Rei, será rei de Nárnia, Senhor de Cair Paravel e Imperador das Ilhas Solitárias. Você e os seus descendentes, enquanto durar a sua raça. A sua coroação... Mas o que vem a ser isso?
Nesse momento, um estranho cortejo aproximava–se: onze ratos, seis dos quais transportavam alguma coisa numa liteira feita de ramos. Nunca ninguém viu ratos mais tristes do que aqueles. Cobertos de lama (alguns também de sangue), as orelhas e os bigodes caídos, arrastavam a cauda pela relva. O que abria o cortejo tocava numa flauta uma melodia triste. O que jazia na maça parecia um monte de pêlo úmido: era tudo o que restava de Ripchip. Respirava ainda, mas estava já mais morto do que vivo, muito ferido, com uma pata esmagada; e onde antigamente era a cauda havia agora só um coto de rabo muito curtinho.
– É a sua vez, Lúcia! – disse Aslam.
Num abrir e fechar de olhos, Lúcia pegou seu frasco de diamante. Ainda que bastasse uma gota em cada ferimento, Ripchip tinha tantos que se fez um longo e pesado silêncio, até que ela finalmente acabou e o Senhor Rato saltou da maça. Levou imediatamente a mão ao punho da espada, enquanto com a outra torcia os bigodes. Fez uma reverência.
– Salve, Aslam! – disse, na sua vozinha aguda. –Tenho a honra de... – Mas parou de repente.
A verdade é que continuava sem cauda, ou porque Lúcia se esquecera desse pormenor ou porque o bálsamo, capaz de curar as feridas, não tinha o dom de fazer crescer as coisas outra vez. Foi quando fazia a reverência que Ripchip tomou consciência de sua perda. Talvez porque a falta de cauda lhe alterasse o equilíbrio. Olhou por cima do ombro direito. Não vendo a cauda, esticou o pescoço até conseguir voltar os ombros e depois todo o tronco. Mas nessa altura também as pernas se voltaram e nada viu. Estendeu de novo o pescoço sem resultado. Só depois de ter dado três voltas completas se apercebeu da amarga verdade.
– Estou perplexo! — declarou, dirigindo–se a Aslam. – Estou absolutamente fora de mim. Peço a sua indulgência pelo fato de apresentar–me de maneira tão imprópria.
– Pelo contrário, até lhe fica muito bem, pequenino – disse Aslam.
– Mesmo assim, se se pudesse fazer alguma coisa... talvez Vossa Majestade... – acrescentou, curvando–se para Lúcia.
– Mas para que você quer uma cauda? – perguntou Aslam.
– Senhor – replicou o rato –, é verdade que, sem ela, posso comer e dormir e dar a vida pelo meu rei. Mas a cauda sempre foi a honra e a glória de um rato.
– Parece que às vezes você se preocupa demais com a sua honra – disse Aslam.
– Rei poderoso sobre todos os Grandes Reis –respondeu Ripchip –, permita recordar–lhe que a nós, os ratos, foi dado um tamanho muito pequeno, de modo que, a não ser que conservemos a nossa dignidade, alguns dos que medem as pessoas aos palmos seriam bem capazes de se permitir brincadeiras de mau gosto às nossas custas. Por isso é que não perco a oportunidade de afirmar que todo aquele que não quiser sentir esta espada bem perto do coração deve evitar, na minha presença, toda referência a ratoeiras e queijo frito. Não admito, Senhor... nem ao mais alto idiota de Nárnia.
Nesse momento, olhou furioso para Verruma; mas o gigante, sempre atrasado, ainda não tinha conseguido descobrir o que se discutia lá embaixo, de modo que não entendeu o comentário.
– Por que todos os seus seguidores estão de espada na mão? – perguntou Aslam.
– Com licença de Vossa Majestade – disse o segundo rato, que se chamava Pipcik. – Estamos todos prontos a cortar a cauda se o nosso chefe ficar sem a dele. Não queremos ostentar uma honra que é negada ao Grande Rato.
– Ah! – rugiu Aslam. Vocês venceram! São muito corajosos. Não pela sua dignidade, Ripchip, mas pelo amor que o liga ao seu povo e, mais ainda, pela bondade que o seu povo mostrou para comigo, há muitos anos, quando roeu as cordas que me prendiam à Mesa de Pedra (se bem que tenham esquecido, foi nessa ocasião que começaram a falar), você terá de novo a sua cauda.
Mal Aslam acabara de pronunciar estas palavras e já a cauda estava em seu lugar. Então, seguindo as instruções de Aslam, Pedro conferiu a Caspian a dignidade de Cavaleiro da Ordem do Leão, e Caspian, uma vez armado cavaleiro, conferiu a honra a Caça–trufas, Trumpkin e Ripchip, declarando o doutor Cornelius seu Supremo Magistrado e confirmando ao Urso Barrigudo o direito hereditário de Arbitro. Tudo isto no meio de grandes aplausos.
Os soldados telmarinos foram então conduzidos, firmemente, mas sem insultos nem pancada, para a outra margem do Beruna, e ficaram prisioneiros na cidade, recebendo aí carne e bebida. Fizeram grande berreiro quando atravessaram o rio a vau, porque detestavam a água corrente, tanto quanto detestavam e temiam os bosques e animais. Por fim, também essa balbúrdia acabou e começou a parte mais agradável daquele longo dia.
Lúcia, sentada junto de Aslam e sentindo–se divinamente feliz, perguntava a si própria o que é que as árvores estariam fazendo. A princípio achou que estivessem simplesmente dançando, pois moviam–se lentamente em dois círculos, um que girava da esquerda para a direita, outro que ia da direita para o meio dos círculos. Parecia às vezes que cortavam longas mechas de cabelos. Outras, porém, davam a idéia de que arrancavam pedaços dos dedos... mas, se assim era, deviam ter dedos para dar e vender e (parecia) não sentiam nem um pouquinho de dor. Fosse o que fosse que atirassem, ao tocar o chão se transformava em lenha seca. Três ou quatro anões vieram e atearam fogo à lenha, que começou a estalar e a fazer labaredas, até que crepitou como uma grande fogueira em noite de São João. Fizeram um círculo em redor.
Então Baco, Sileno e as mênades deram início a uma dança muito mais animada do que a das árvores. Não era apenas uma dança de divertimento e beleza, mas também uma dança mágica de abundância, porque, onde quer que as suas mãos ou os seus pés tocassem, surgia um verdadeiro banquete: nacos de carne assada, que enchiam o bosque com o seu delicioso aroma; bolos de aveia e trigo; mel e doces de muitas cores; creme de leite espesso, pêssegos, ameixas, romãs, pêras, uvas, morangos... verdadeiras cataratas de frutas. Depois foi a vez dos vinhos em taças de madeira e vasos entrelaçados com hera. Vinhos escuros e espessos como licor de amoras, outros de um vermelho–vivo como geléia rubra e derretida, e ainda outros amarelos e verdes, e outros amarelo–esverdeados e verde–amarelados.
Para as árvores a comida era diferente. Quando Lúcia viu que Escava–terra e suas toupeiras revolviam a terra em lugares que Baco lhes indicava, compreendeu que as árvores iriam comer terra e sentiu um arrepio. Mas, quando viu as terras que lhes eram oferecidas, mudou de opinião. Começaram a comer um esplêndido torrão castanho, que quase não se distinguia do chocolate, tão parecido que Edmundo provou um pouquinho, mas não achou nada bom. Depois de terem acalmado a fome com o torrão, as árvores voltaram–se para uma terra quase cor–de–rosa, da qual diziam ser leve e doce. Na hora do queijo, comeram uma porção de solo calcário, seguindo–se depois petiscos delicados, preparados com as areias mais finas e polvilhados com areia prateada. Beberam muito pouco vinho, mas mesmo assim as quaresmeiras ficaram muito falantes; quase sempre matavam a sede com longos goles de mistura de chuva e orvalho, aromatizada com flores campestres e perfumada com a suave fragrância das nuvens mais transparentes. Assim Aslam ofereceu aos narnianos um banquete, que durou até muito depois do pôr–do–sol e do despertar das primeiras estrelas. E a grande fogueira, agora mais rubra e menos crepitante, brilhava como um farol no meio dos bosques escuros. Ao vê–la, lá longe, os telmarinos, aterrados, perguntaram–se o que seria aquilo. O melhor da festa foi que ela não acabou, nem as pessoas foram embora. Simplesmente, à medida que a conversa se espaçava e perdia a animação, um e outro, sentindo a cabeça pesada, adormecia entre os amigos, de pés voltados para a fogueira. Até que finalmente caiu o silêncio e se ouviu de novo o parolar da água que saltitava de pedra em pedra no Passo do Beruna. Durante toda a noite, Aslam e a Lua contemplaram–se com imensa alegria.
No dia seguinte, despacharam–se mensageiros (principalmente esquilos e pássaros) por todo o país, com uma comunicação aos telmarinos dispersos, sem esquecer os que estavam presos em Beruna. Foi–lhes anunciado que Caspian era agora o rei e que, a partir daquele momento, Nárnia pertencia não só aos humanos como aos animais falantes, aos anões, às dríades, aos faunos e a todas as outras criaturas. Quem quisesse aceitar as novas condições poderia ficar; para aqueles que não estivessem satisfeitos, Aslam arranjaria outro país. Os interessados em mudar–se, deveriam apresentar–se a Aslam e aos reis dali a cinco dias, ao meio–dia em ponto, no Passo do Beruna.
Você pode imaginar a indecisão que isto causou entre os telmarinos. Muitos deles, principalmente os mais novos, como acontecera a Caspian, tinham ouvido histórias dos velhos tempos e ficaram encantados com a idéia de esses tempos voltarem. Já tinham até começado a fazer amigos entre as outras criaturas e resolveram ficar em Nárnia. Mas grande parte dos mais velhos, sobretudo os que tinham ocupado cargos importantes durante o reinado de Miraz, estavam irritados e não queriam viver num país onde não pudessem mandar.
– Era só o que faltava! Ficar vivendo aqui com um bando de animais de circo! E ainda por cima com fantasmas! – acrescentavam outros, tremendo de medo. – É, porque essas dríades são fantasmas, não passam disso! Seria uma loucura!
E também estavam desconfiados.
– Não confio neles – diziam. – De mais a mais, com aquele Leão medonho! Tenham certeza de que ele vai usar as suas garras, vocês vão ver!
Por outro lado, desconfiavam igualmente da tal proposta de um novo país.
– Vai é levar a gente para um covil e devorar um por um!
E, quanto mais discutiam entre si, mais irritados e desconfiados ficavam. No dia marcado, porém, mais da metade apareceu.
Num dos extremos da clareira, Aslam mandara espetar duas estacas, mais altas do que um homem e afastadas cerca de um metro. Outra estaca mais leve foi posta horizontalmente em cima das duas primeiras, reunindo–as de modo que parecessem uma porta, que vinha não se sabe de onde e dava não se sabe para onde. Em frente da porta postou–se Aslam, com Pedro à direita e Caspian à esquerda. Em torno, reuniram–se Susana, Lúcia, Trumpkin, Caça–trufas, doutor Cornelius, Ciclone, Ripchip e os outros. As crianças e os anões tinham aproveitado bem o guarda–roupa do antigo castelo de Miraz, que era agora de Caspian. Com sedas, brocados e linhos alvos, armaduras de prata e espadas incrustadas de pedras preciosas, elmos dourados e chapéus de plumas, ofereciam um espetáculo tão deslumbrante que feria a vista. Até os animais traziam ao pescoço colares preciosos. Mas ninguém reparava neles ou nas crianças. O ouro da juba de Aslam excedia a tudo. Os outros antigos narnianos estavam de pé, de ambos os lados da clareira; no outro extremo, os telmarinos. O sol brilhava intensamente, as bandeiras ondulavam ao vento.
– Homens de Teimar – começou Aslam. – Vocês, que procuram nova pátria, ouçam–me. Mandá–los–ei para a sua terra, que eu conheço e vocês não!
– Não nos lembramos mais de Teimar. Não sabemos onde fica nem como é – murmuraram os telmarinos.
– Vocês vieram de Teimar para Nárnia – disse Aslam. – Mas chegaram a Teimar provenientes de outro lugar. Não pertencem a este mundo. Chegaram aqui há algumas gerações, vindos do mesmo mundo a que pertence o Grande Rei Pedro.
Ao ouvirem isto, alguns dos telmarinos começaram a resmungar.
– Não falei? Vai liquidar a gente. Vai mandar a gente para o outro lado do mundo.
Outros começaram, empertigados, a dar pancadinhas nas costas uns dos outros, dizendo:
– Agora entendemos tudo. Não era tão difícil adivinhar que não pertencíamos ao mundo desta gente esquisita e detestável. Corre em nossas veias sangue real.
Até Caspian, Cornelius e as crianças se voltaram para Aslam, com ar de espanto.
– Silêncio! – disse Aslam, num tom de voz baixo que mais se aproximava do seu rugido normal. A terra pareceu estremecer um pouco, e todos os seres vivos ficaram imóveis como estátuas.
– Você, Caspian – disse Aslam –, bem podia ter adivinhado que não poderia ser o verdadeiro rei de Nárnia se não fosse, como os antigos reis, filho de Adão, vindo do mundo dos filhos de Adão. É o que você é. Há muitos anos aconteceu que, nesse outro mundo, em um lugar chamado Mar do Sul, um barco de piratas foi arrastado para uma ilha por uma tempestade. Os piratas fizeram o que costumam fazer: mataram os indígenas, tomaram as mulheres por esposas, dormiram à sombra das palmeiras, acordaram, discutiram, matando–se de vez em quando uns aos outros. Numa dessas refregas, seis deles, obrigados a fugir, foram com as mulheres para o centro da ilha; subiram depois a montanha e se esconderam numa caverna. Acontece que a caverna era um lugar mágico, uma das fendas abertas entre aquele mundo e este. E foi assim que caíram ou rolaram pela tal passagem e se encontraram de repente neste mundo, na terra de Teimar, que era então desabitada. Por que era desabitada é uma longa história, que não contarei agora. Os seus descendentes viveram em Teimar e formaram um povo arrogante e temido; passadas muitas gerações, houve em Teimar uma grande fome e por isso invadiram Nárnia, onde reinava então uma certa desordem (outra longa história), e conquistaram–na e submeteram–na. Está compreendendo, rei Caspian?
– Compreendo, Senhor. Estava pensando que gostaria de ter tido uma ascendência mais honrosa.
– Descende de Adão e Eva – tornou Aslam. – É honra suficientemente grande para que o mendigo mais miserável possa andar de cabeça erguida, e também vergonha suficientemente grande para fazer vergar os ombros do maior imperador da Terra. Dê–se assim por satisfeito.
Caspian baixou a cabeça.
– E agora, homens e mulheres de Teimar, querem vocês voltar para essa ilha no mundo dos homens, de onde vieram os seus pais? A raça de piratas que ali desembarcou já se extinguiu, e a ilha está desabitada. Há fontes de água fresca, solo fértil, madeira para construções, e as lagoas são muito ricas em peixes. Os outros homens desse outro mundo ainda não descobriram a ilha. A passagem está aberta para o regresso de vocês. Logo que estiverem do outro lado, ela se fechará para sempre.
Durante alguns segundos, fez–se silêncio. Depois, um dos soldados telmarinos, um sujeito forte e simpático, avançou e disse:
– Pois bem! Aceito a proposta.
– Aprovo a sua escolha – disse Aslam. – E, porque foi o primeiro a decidir–se, um poder mágico se exercerá sobre você. Será feliz nesse outro mundo. Em frente!
O homem, agora um pouco pálido, avançou. Aslam e os outros afastaram–se, deixando–lhe livre acesso à porta feita de estacas.
– Atravesse–a, meu filho – disse Aslam, inclinando–se e tocando o nariz do homem com o seu próprio nariz.
No momento em que sentiu o bafo do Leão, os seus olhos adquiriram uma expressão nova (um pouco de surpresa, mas não de tristeza), como se ele quisesse lembrar–se de alguma coisa. Endireitou–se e entrou pela porta.
Todos os olhares estavam cravados nele. Todos viam as três estacas de madeira e, através delas, do outro lado, as árvores, a relva e o céu de Nárnia. Viram o homem entre os dois postes; depois, de repente, desapareceu.
Do outro extremo da clareira ouviu–se o pranto dos telmarinos:
– Ai! Que terá acontecido? Quer matar a todos nós? Não iremos para lá.
Então um dos telmarinos mais inteligentes disse:
– Não vemos nenhum outro mundo além daqueles postes. Se quer que acreditemos no que diz, por que um dos seus não atravessa a porta? Os seus amigos mantêm–se bem afastados dela.
Logo Ripchip avançou e fez uma reverência.
– Se meu exemplo pode servir de alguma coisa, Aslam, a uma ordem sua passarei com onze ratos por debaixo daquele arco... sem a menor hesitação!
– Não, meu filho – disse Aslam, pousando de leve a pata sobre a cabeça de Ripchip. – Fariam coisas terríveis com vocês naquele mundo: seriam exibidos nas feiras. São outros que têm de passar.
– Vamos! – disse Pedro de repente, voltando–se para Edmundo e Lúcia. – Chegou a nossa hora.
– Que quer dizer com isso? – perguntou Edmundo.
– Por aqui – disse Susana, que parecia estar a par de tudo. – Temos de voltar à floresta, para mudar...
– Mudar o quê? – perguntou Lúcia.
– A roupa, naturalmente! – declarou Susana. – Bonita figura iríamos fazer na estação da estrada de ferro com estas roupas.
– Mas as nossas estão no castelo de Caspian –objetou Edmundo.
– Não! – disse Pedro, continuando no rumo da floresta mais cerrada. – Estão aqui. Vieram esta manhã. Está tudo em ordem.
– Era disso que Aslam falava com você e Susana esta manhã? – perguntou Lúcia.
– Era disso e de outras coisas – disse Pedro, com um ar muito solene. – Não posso contar–lhes tudo. Há coisas que ele queria dizer a Su e a mim, porque não voltaremos a Nárnia.
– Nunca mais?! – exclamaram Edmundo e Lúcia, consternados.
– Vocês hão de voltar – explicou Pedro. – Pelo menos, pelo que ele disse, fiquei convencido de que ele deseja a volta de vocês um dia. Su e eu é que não. Aslam diz que já estamos muito grandes.
– Mas, Pedro, que azar! – exclamou Lúcia.
– Acho que já estou conformado – replicou Pedro. – É tudo muito diferente do que eu pensava. Compreenderá quando chegar a sua vez. Agora vamos arrumar as coisas.
Foi uma sensação esquisita e não muito agradável despir os trajes reais e voltar a aparecer com os uniformes de colégio, já um tanto usados. Um ou dois dos telmarinos esboçaram uns risinhos de troça. Mas as outras criaturas levantaram–se e aclamaram o Grande Rei Pedro, a rainha Susana, da trompa mágica, o rei Edmundo e a rainha Lúcia. As crianças despediram–se afetuosamente dos velhos amigos, e Lúcia até chegou a chorar.
Os animais beijaram as crianças, os Ursos Barrigudos deram–lhes tapinhas amáveis, Trumpkin apertou–lhes a mão
e, para terminar, não faltou um abraço bem apertado de Caça–trufas, que lhes fez cócegas com o bigode. É claro que Caspian voltou a oferecer a trompa a Susana, e é claro que esta lhe disse que a guardasse. Depois, magnífica e terrível, seguiu–se a despedida de Aslam. Pedro tomou então o seu lugar, com Susana atrás, pousando–lhe as mãos nos ombros, e as mãos de Edmundo nos ombros dela, e as do primeiro telmarino nos de Lúcia. E assim, numa longa fila, avançaram para a porta. Seguiu–se um momento indescritível, durante o qual as crianças viram três coisas ao mesmo tempo. Viram a boca de uma caverna, descobrindo o verde e o azul brilhantes de uma ilha do Pacífico – a ilha em que os telmarinos iriam encontrar–se no momento em que transpusessem a porta. Viram uma clareira em Nárnia e os rostos dos anões e dos animais e os olhos profundos de Aslam e as manchinhas brancas do focinho do texugo. A terceira visão, porém, foi aquela que rapidamente dominou as outras duas: uma plataforma cinzenta e arenosa de uma estação de estrada de ferro provinciana, um banco com malas ao lado, eles sentados no banco, como se nunca tivessem saído de lá... O espetáculo por um instante lhes pareceu um pouco monótono, depois de tudo o que tinham vivido, mas, inexplicavelmente, tinha também o seu encanto, com o cheiro característico e familiar das estações ferroviárias, e o céu da terra natal e as perspectivas do primeiro período de aulas.
– Bem – disse Pedro – foi uma esplêndida aventura!
– Ora bolas! – exclamou Edmundo. – Deixei minha lanterna nova em Nárnia...

Fim.

Príncipe Caspian | As Crônicas de Nárnia IV (1951)Onde histórias criam vida. Descubra agora