𝔒𝔲𝔯𝔬

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O mar de ouro ondulava sob ela.

Revolto. Constante e arredio, ninando-a sob as próprias veias e serpenteando sob as lâminas de sol.

Ela se lembrava de água dourada e nuvens de seda e ondas irrequietas. Ela se lembrava do ranger das velas e dos gritos de recuo e do quebrar nas rochas.

Ela se lembrava da dor. Do fogo se alastrando sob os olhos até os ombros, do arder das mãos atadas e dos pés dormentes.

Atadas.

Suas mãos estavam atadas.

Ela pôde sentir ouro e calor e sol derramando-se sobre seus olhos, luz dourada e incandescente ardendo numa centelha arisca antes de esfriar novamente.

Ela não estava no navio. Tampouco no mar.

Estava numa carroça decrépita. Numa plantação de trigo. Atada e amarrada.

E não estava sozinha.

A silhueta lânguida vacilava ao seu lado. As mãos e pés atados, apenas o vislumbre de mechas ruivas recobrindo o rosto caído, ardendo tal qual fogo sob o esvanecer do tardar.

O rosto da garota à sua frente, porém, era claro. A pele alva contrastada sob cabelos negros, sangue coagulado escurecendo as veias sobre os olhos, os pulsos, a boca.

Morta.

Uma lâmina de ferro ardeu através de seu peito, algo do qual ela era capaz de reconhecer como medo. Ela assistiu o corpo das duas garotas caírem e baterem contra a madeira da carroça, até que uma voz engolisse seus sentidos.

- Ahn, Murray... ela acordou...

O estrado da carroça cobria a maior parte, mas ela ainda pôde ver o suficiente. Sentado sobre o banco de condução havia um homem - excessivamente alto, os ombros tomando todo o espaço do encosto de madeira conforme os cabelos castanhos e puídos balançavam sob a cadência da carroça. O segundo, ao seu lado, mantinha uma pose soturna conforme encarava a estrada adiante; as vestes impecáveis em desunião com a madeira pobre, os cabelos escovados refletindo a reminiscência de luz.

Murray se contentara a lançar um olhar seco para onde ela estava, tornando-se novamente ao mar de ouro à frente.

Os caules de trigo se eriçaram sob o vento, o farfalhar das folhas e a canção do silêncio carregando consigo um cheiro desconhecido. Antigo, ancestral. Curioso.

Vinha da garota morta.

A garota ruiva grunhira de seu lugar, os dedos enrolando-se sob as amarras. Suas asas estavam presas, mas podia sentir a cauda livre. Os sentidos pareciam embaralhados, porém. Embaçados. E quando ela tentou bater na garota viva, ela acertara a parede da carroça em movimento.

Forte o suficiente para que a pendesse sob duas rodas.

- Ei! Quieta aí! - a voz de Murray soava como ele se parecia. Rouca, velha e desgastada.

- Onde estamos indo? - ela sentira o poder vazando por baixo das palavras. Não como uma dúvida, uma questão ou pergunta. Uma ordem. Um aviso.

Murray trocara um olhar significativo com o parceiro antes de se tornar novamente à frente, cuspindo uma resposta que não satisfaria nenhuma de suas dúvidas.

- Vamos levá-las à lorde Hendrick Hawise, lorde de Txien. Agora, calada.

A carruagem parara numa sinfonia de rangidos e estalos. Murray descera numa profusão de ameaças ao parceiro, entre os quais ela pôde ouvir estou indo mijar, não solte a porra das garotas.

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