Prólogo - Luciano

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— Será que eu levo mais uma maçã? — mamãe perguntou para mim enquanto escolhia as frutas que iríamos levar.

— Mãe, maçã é tão sem graça. Eu queria iogurte! — resmunguei, torcendo para que ela largasse a fruta e pegasse o que eu queria.

— Meu menino, você já comeu o suficiente de doces nesse mês. Escolha a fruta, vamos! — Com sua costumeira calma, tentava me convencer.

Olhei para os lados no supermercado e cruzei meus braços com raiva. Eu não gostava de fruta, não era gostoso o suficiente.

— Bem, vou levar duas maçãs a mais — minha mãe falou para ninguém em particular.

Pouco tempo depois, seguimos para o caixa passar as mercadorias e saímos do estabelecimento. Eu segurava duas sacolas e minha mãe quatro.

— Moça, pode me ajudar? Estou com tanta fome. — Uma mulher com roupas rasgadas e sujas nos abordou no estacionamento. Ela parecia ser uma moradora de rua.

— Oh! — Minha mãe olhou para mim, sorriu e depois abriu uma das sacolas. Pegou algumas frutas e estendeu para a mulher. — Posso te oferecer essas frutas?

Agradecendo a todas as gerações da nossa família, a moça se afastou feliz pela doação.

— Agora fiquei sem iogurte e maçã, mãe — choraminguei enquanto caminhamos até o nosso carro.

— Filho, para tudo existe um propósito. — Ela abriu a porta do automóvel, acomodou as sacolas no assento de trás e entrou. Fiz o mesmo e entrei no banco do passageiro. — Talvez você não entenda agora, mas vou explicar. Nossa intuição é a melhor ferramenta. Se soubermos usar, podemos melhorar não só nossa vida, mas de outras pessoas ao nosso redor.

— O que é intuição?

— Sabe quando surge uma ideia na nossa cabeça, assim, do nada? Quando olhamos para algo, pensamos em uma pergunta e na resposta ao mesmo tempo? — Minha mãe deu partida e dirigiu.

— Não — murmurei e ela pareceu não se importar com a negativa.

— Quando sentir que algo deve ser feito, apenas siga a sua intuição. Ela é a voz que você precisa ouvir, não importa qual momento da vida, nem nas coisas que foram feitas para estarem aqui.

— Papai não está aqui por conta dessa intuição? — Eu tinha acertado um ponto delicado, porque todo o seu sorriso se foi e algo mais pesado ficou pairando entre nós.

— Você só existe, meu filho, porque escutei essa voz que não nos abandona nunca. Às vezes, ela tem a voz de alguém querido, dizendo para fazer uma coisa e não outra. Nem sempre o que é certo para todos é o que deveria ser feito.

— Não entendi. — Cruzei os braços, porque esperava uma resposta direta, sim ou não. — Eu queria iogurte e você não comprou.

— Comer mais doces não tem nada a ver com a nossa conversa — falou, divertida. — Percebeu que peguei mais maçãs, mesmo com a sua negativa?

— Sim, mas você entregou tudo para a mulher da rua.

— Exato, Luciano. Minha intuição me disse para pegar mais frutas do que o normal, porque elas seriam úteis em outro momento.

— Ok. — Encerrei a conversa, porque continuava não compreendendo o que minha mãe queria dizer com tudo aquilo.

— Quando estiver em alguma situação onde te faz ter dúvida, meu filho, feche os olhos, respire fundo e deixe a mente livre para visualizar a solução. A intuição também resolve problemas.

— Será que me ajudará na prova da escola? — Mostrei-me mais animado e minha mãe riu alto.

— Se você estudar, sim, as respostas te acompanharão. — Estendeu a mão e apertou a minha. — Tenho muito orgulho de você, Luciano. Não importa o que me aconteceu ou o que poderá ser da nossa vida, não se esqueça disso, eu te amo e acredito na bondade que existe em seu coração, na sua intuição.

— Ok, mamãe. — Queria parar o falatório, estava me incomodando não entender tudo o que ela falava.

— Um sorriso, uma pessoa conhecida ou um dinheiro extra, inesperado... acredite nos sinais que Deus nos envia.

***

Acordei assustado, sentei-me na cama e percebi o quanto estava suado e irritado ao mesmo tempo. Esse era um sonho recorrente, de uma situação que vivi na infância e que não parecia desgrudar da minha mente.

Porra! Era minha consciência querendo me levar de volta para o momento antes de realmente conhecer meu pai e entrar em seu mundo. Por mais que eu não seguisse minha intuição, ela estava lá, com a voz da minha mãe me infernizando.

Peguei o celular para ver as horas, voltei a me deitar por ainda ser madrugada e respirei fundo antes de tentar dormir novamente. Tinha muito trabalho a ser feito para o meu pai e seus negócios ilícitos. Essa era minha vida, uma que não poderia ser abandonada ou trocada, como pessoas comuns faziam no momento que mudavam de profissão.

Não... eu precisava da crueldade para me manter vivo, necessitava do imoral para saciar o buraco que a ausência da minha mãe me causou. Meu pai era a escuridão, me levou para o seu mundo e me tornou seu igual para perpetuar o seu legado.

Esperava morrer junto com tudo de ruim que ele faz com todos ao seu redor, só não esperava que eu seguiria os seus passos, mesmo assombrado pela voz da minha mãe, a maldita intuição.

***

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Meu Lado Obscuro - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora