Branca Canela

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É a sexta feira de um fim de tarde chuvoso. O cheirinho de terra molhada já começa a se insinuar pelas frestas da porta e da janela do escritório. 

       O advogado não pode perceber esse detalhe climático, ele está compenetrado finalizando a leitura de um artigo sobre a importância das emoções na aprendizagem. O assunto não tem muito a ver com a sua alçada, era uma mera leitura de auxílio pessoal. As leituras profissionais acadêmicas já estafariam Tomason Loyola no começo do seu expediente. 

        A mão  direita roça por uma útima vez seu cavanhaque cerrado, num impulso ele fecha o note, se acomoda em sua cadeira giratória acochoada, põe os pés cruzados em cima da banqueta, descansa a cabeça para trás, 

- Mais um dia vencido - pontua. 

        Sentado ali, não demora e já começa a divagar pensamentos sobre as questões sistemáticas que envolvem seu cotidiano profissional. Pensa que isso se estendera dos anos de formação -  o sistema educacional sempre incutia na cabeça de Tomason o senso crítico como um mantra, tanto que, em algumas audiências, ele se sentia um androide, um robô imerso em formalidades -  até aqueles dias mais despidos do papel social que exerce, quando em seu quarto, no intervalo de uma xícara de café para outra, tudo que ele sabia sobre o amor estava no aroma que ascendia daquela xícara. E é uma xícara mesmo que ele tem tatuada no antebraço esquerdo como forma de eternizar sua bebida favorita. Sua melhor memória afetiva.

         Na verdade ele lembra com carinho devocional da primeira vez que tomou café em casa. Onze anos, cabelo desgrenhado sobre a testa, uma mochilinha nas costas, o óculos de grau meio torto no rosto, voltava do reforço escolar quando subiu a calçada da porta de casa e sentiu o cheirinho de café quentinho da sua mãe recepcioná-lo com um carinho no nariz. Esse mesmo carinho suspendeu Tomason no ar e ele chegou até a cozinha voando. Seu cansaço mental foi imediatamente refrigerado por aquela sensação maravilhosa.

        Dentro da realidade pragmática da qual faz parte, foi juri em processos de sua cidade. Leu "os exploradores de caverna" e deu risada de tanto canibalismo. Assistiu "doze homens e uma sentença" e pensou que a dúvida razoável era uma canalhice dissimulada. Foi mesário voluntário e não entendia o porque de tanta euforia passional por parte dos eleitores, se todos os candidatos, segundo o seu entender, destruiam a racionalidade do povo e sequestravam seus estômagos e seus corações. Mas ali estava um sem numero de gente em pé de guerra para defender seus respectivos bandidos de estimação, pensou ele. 

       Tomason, em aspectos gerais, enxerga o seu bem estar. Ele tem uma vida ativa e bem sucedida, cultua dos bons hábitos sociais, tem a atividade física como aliada - sempre que precisa abstrair a rotina, vai correr - , ministra palestra sobre direito civil por todo canto do país, faz yoga e arranca boas risadas com sua série predileta, "Big Bang, a teoria". 

         Abre a gaveta na parte esquerda inferior da banqueta e pega um cartãozinho. O seu cartãozinho profissional de contato e agendamento. Apoiando o cartão com o indicador, arranha a base do polegar em cima do seu nome num movimento para cima e para baixo. 

         Seu expediente terminou. Na saída do escritório, antes de ir para casa, Tomason resolve fazer algo fora da rotina; aquilo lhe serviria como um auto-desafio. 

          - rua das carmelitas, cnpj ok, nome do instituto confere. Deve ser aqui - diz Tomason na porta do instituto Nossa Senhora do Socorro, uma casa de abrigados de rua em situação de inanição nutricional. Nas mãos ele carrega duas pesadas e sortidas cestas básicas. 

         Toca a campainha. Uma cuidadora em roupas semelhantes as de uma freira abre.
          - Bom fim de tarde, irmã Serena! depois que lhe liguei, imaginei chegar no máximo em vinte minutos, mas o engarrafmento foi brabo.

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⏰ Última atualização: Sep 02, 2022 ⏰

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