Amanda e Fernanda corriam de mãos dadas mata adentro. Errando os passos e tropeçando pela pouca luz que a lua emanava. Aquele ponto da floresta era repleto de raízes que saiam do solo e árvores com galhos baixos. Por vezes só notavam quando estavam a um palmo do obstáculo. Atrás delas, o som de passos continuava num ritmo crescente.
— Eu vejo vocês! — gritou a voz rouca do homem que as perseguia, levemente ofegante. Faria a perseguição a cavalo, se as duas não tivessem se enfiado no mato.
As duas notaram o brilho de um lampião vindo de trás, se aproximando lentamente. Então, quando já podiam ouvir a respiração do perseguidor, chegaram a uma pequena clareira. O lugar não devia ter mais do que quatro metros de diâmetro e quando elas passavam pelo centro o perseguidor deu um encontrão de ombro nelas, fazendo com que se soltassem.
Amanda rolou na grama e encostou numa árvore na beirada da clareira. Fernanda se recuperou rápido da queda, parando de frente ao agressor e encarando-o. O homem vestia um manto por cima de uma cota de malha e uma espécie de boina que exibia o ícone real. Portava na cintura uma espada curta de lâmina larga e em mãos segurava um mangual, um peso de metal preso à uma corrente, que era usado de arma.
O guarda girou o mangual e atacou a garota com um golpe de cima para baixo. Ela, já acostumada com brigas, foi rápida e desviou o corpo para o lado. O homem agiu rápido e brandiu o mangual baixo na direção dela, dando-lhe uma rasteira com a corrente. A garota caiu de costas no chão e foi até perto da irmã na árvore, meio se arrastando, meio engatinhando.
O homem se aproximou vitorioso das duas e proferiu:
— Foram avisadas — ele ainda ofegava pela corrida. Demonstrava, porém, uma certa satisfação por encurralar as fugitivas. — Qualquer resistência ao interrogatório seria punido com a morte.
— Interrogatório? — Amanda tinha um misto de medo e revolta na voz — As notícias viajam pelo reino. Nós sabemos muito bem que independe das respostas que déssemos, não teríamos saída. Foi assim nos outro dois vilarejos que vocês visitaram, não foi? Disseram que iriam só fazer perguntas para a população, mas então massacraram todas as mulheres. Acham mesmo que se fôssemos bruxas, nós viveríamos aqui? — Havia muito medo e indignação em seus olhos, mas nenhuma lágrima.
O guarda hesitou. Ele era humano, capaz de coisas terríveis, mas ainda humano. Lembrou do último massacre, há um mês. Dos filhos pedindo por suas mães, maridos por suas esposas, pais por suas filhas. Pensou em sua filha, segura na capital. A essa hora sua esposa devia estar colocando ela para dormir. Pensou como odiaria ver elas no lugar daquelas mulheres no vilarejo. Esse pensamento durou um segundo, pois logo se lembrou da maldição, dos relatos que foram ditos apenas aos soldados do exército real e que era necessário fazer aquilo para salvar as mesmas mulheres que ama do destino que sofreram os amaldiçoados.
Fernanda apertou a irmã. Amanda apertou os próprios punhos.
— Sinto muito garotas. Sou um soldado cumprindo ordens — sacou a espada, guardou o mangual na cintura. Deu dois passos em direção às irmãs, mas então levou um baque.
Do meio da mata surgira um vulto negro que se jogou por cima do guarda. Olhando melhor, as garotas viram que era um urso. O urso chacoalhava o homem no chão com a boca segurando sua cintura e dava patadas em seu rosto. Por duas vezes o homem cutucou a fera com a espada, mas não adiantava. Uma onça mordeu-o no pescoço, interrompendo um grito do guarda em meio a um jorro de sangue e matando-o.
Fernanda olhou para a irmã e apontou a árvore. Amanda balançou a cabeça negativamente e segurou a mão da irmã, mas ela prosseguiu. Ficou de pé silenciosamente — não queria chamar a atenção do urso que agora devorava um dos braços do homem. Subiu com facilidade até o primeiro galho e deu a mão para Amanda. Dali até o topo da árvore repetiram esse processo.
De cima, as duas órfãs viam o vilarejo. Só podiam imaginar nos horrores que as mulheres estavam sofrendo. Olhando para baixo, viram a onça devorar os membros e o abdômen do soldado. Abraçadas em silêncio, as duas pensavam no que havia acontecido. Amanda pensava na expressão no rosto homem depois do que ela disse e lamentou por sua paixão cega ao rei, que o trouxe até ali e, de certo, condenara sua alma. Fernanda pensou no quão indefesas as duas estavam sob a árvore e prometeu para si mesma que essa era a última vez que dependeria da sorte para sobreviver.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Brava, a Pura e o Maldito
FantasyUma maldição assola o reino de Cerca da Serra. Ninguém que presencia ela sobrevive, apenas indícios do que houve restam. O Rei, convicto de que a desgraça é fruto de bruxaria, inicia uma caça às bruxas para cortar o mal pela raiz enquanto seu feitic...