AVISO DE CONTEÚDO: ESTE LIVRO POSSUI DESCRIÇÕES QUE PODEM DESENCADEAR GATILHOS.
A morte que nos uniu.
De Heartbroken.
Nova Iorque - 6 de abril de 2020.
Hoje o dia começou meio estranho, não posso negar. Talvez seja o fato de que mamãe e papai estão em casa, em plena segunda-feira. Ou que tomamos café juntos, como uma família normal. Carl até se esforçou, descendo do apartamento e atravessando a rua para comprar waffles na nova padaria, a qual Hanna elogiou a fachada minimalista, sem grandes estruturas exageradas e cores vibrantes.
Para mim, não passava de um lugar sem graça, onde pessoas com vidas chatas passavam boa parte da manhã com os olhos cravados nas telas dos seus notebooks, sem aproveitar os diferentes aromas que emanam do balcão recheado de opções.
A canela no chocolate quente. Os desenhos imperfeitos, e mesmo assim perfeitos, feitos na pequena xícara de cerâmica branca cheia de latte quentinho. A maioria das pessoas vivem em meios tão vastos de experiências e mesmo assim conseguem ser tão vazias quanto uma coroa sem seu rei.
Pelo menos essa é a minha opinião. Não que importe muito.
Mexo os pés descompassadamente, movimentando o par de converse branco, talvez um pouco encardido, e deslocando o ar frio do consultório ao redor deles. Não lembro bem quando os ganhei, só que as poças deixadas por uma semana chuvosa me fizeram estreá-los em grande estilo, rendendo manchas que ficaram eternizadas no tecido.
Eu sei, talvez não seja uma boa hora para estar pensando em um par de sapatos, mas ver Hanna e Carl chorando enquanto o médico tenta falar não é uma das cenas que levaria o Oscar por melhor atuação em filme de drama. Hanna sempre se negou a borrar a maquiagem, e dessa vez não seria diferente.
Para encurtar a história, há algumas semanas eu caí de uma árvore enquanto tentava escalar até a copa para ver o cometa que anunciaram por toda parte, principalmente no Instagram, a única rede social suportável deste planeta.
Estava escuro e um galho acabou cedendo. Hanna não entendeu o motivo de eu ter feito isso, visto que moramos no décimo oitavo andar de um prédio e podia muito bem ter aberto a janela do quarto.
Talvez tenha sido pelo fato do jogo de basquete que Carl assistia na tv da sala estar em um volume extremamente irritante, ou a tediosa live de vendas de roupas que mamãe assistia no tablet, a qual não parava de repetir frases bobas para convencer a todos que precisam comprar coisas novas sem necessidade.
Poderiam ser os dois motivos, ou talvez nenhum deles. Talvez eu só quisesse sair um pouco da grande caixa de concreto que eles insistem em me deixar enquanto saem para viver suas vidas.
Talvez eu quisesse sentir um pouco do mundo por alguns segundos. Não é sempre que um cometa cruza a Terra tão perto.
Enquanto caia, com tudo em câmera lenta, consegui ver o brilho intenso da cauda rasgando o céu.
Valeu a pena.
Não que ter ouvido um sermão de meia hora fosse agradável aos meus ouvidos apreciadores de Lorde, mas todo o resto fez com que eu não tenha me odiado.
E sim, este momento também está incluso no pacote.
Talvez a ficha ainda não tenha caído. Talvez esteja ocupado demais mexendo meus pés para entender que um tumor está crescendo dentro do meu joelho e por isso uma pequena bolinha insiste em me acompanhar desde a queda.
Achávamos que era só um pouquinho de sangue que tinha se acumulado, que em alguns dias ele sumiria.
Obviamente Hanna e Carl esqueceram dele após a primeira semana, já que usar calça de moletom é meu rito diário sagrado, mesmo no verão escaldante.
O que os olhos não veem o coração não sente, certo?
Eu não ligava de tê-lo como companhia, me fazia lembrar daquela noite.
Na sexta-feira, após a brilhante ideia de mudar um pouco e vestir o shorts azul com estampa de abacaxi que ganhei da vovó no último natal, Carl, por mais estranho que pareça, deixou o telefone de lado e resolveu me encarar.
E bom, cá estamos nós.
Em um consultório médico.
Onde acabo de saber que estou com câncer.
Não sei como reagir a essa notícia. Talvez como todo o resto, o que se resume em não sentir, não ligar.
Só aceitar que está lá e aguardar as mudanças que isso pode trazer na pacata vida de Benjamin White.
-
Câncer. Tratamento. Melhorar.
As três palavras que se repetiam e ecoavam pelo carro enquanto voltamos para casa em uma velocidade assustadora de 10 km/h.
O trânsito de Nova Iorque ataca novamente.
O sol insiste em brilhar no céu azul sem nuvens. Uma das manhãs mais lindas do ano, devo comentar. Hanna e Carl deixaram a preocupação de lado há alguns minutos e agora estão discutindo, jogando a bola da culpa de um lado para o outro, como em um jogo de vôlei.
Com todo o resto eles são perfeitos um para o outro. Sem discussões ou xingamentos, somente demonstrações de amor e afeto.
Porém, quando o assunto é sobre mim tudo é diferente.
Enfio a mão direita no bolso do moletom e retiro meus fones, os colocando devagar para que ninguém perceba e diga que estou ignorando a conversa.
Algo que estou realmente tentando fazer.
Passo o dedo pela tela do telefone, vagueando pela playlist lotada de músicas. As vezes me sinto um idiota por ter tantas salvas e só ouvir algumas poucas, o que dificulta na hora de encontrar as que realmente calam a mente e permitem a alma falar.
Pode parecer patético, mas é a verdade.
Em alguns poucos segundos Ribs começa a tocar, ecoando pelos fones que estão no volume máximo.
O software do telefone insiste em me alertar de que isso pode afetar minha audição no futuro, mas ignoro totalmente.
Quem programou isso não deve entender de músicas.
Começo a mexer a boca enquanto encaro a janela, sem emitir som nenhum. "You're the only friend I need. Sharing beds like little kids. We'll laugh until our ribs get tough. But that will never be enough"
Acho que agora tudo será diferente. Talvez assim Hanna e Carl consigam me dar mais atenção. Talvez eles possam finalmente ser aquilo que sempre sonhei.
Meus pais.
Só nós três.
A pedra, o papel e a tesoura.
Heartbroken - Te vejo no amanhã.
Heaven is a place on earth with you.
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A MORTE QUE NOS UNIU
RomanceMorte. Para muitos ela é o fim. A ideia de deixar quem amamos para trás sempre é difícil. Sem lugar ou hora, ninguém nunca sabe quando chegará o momento de receber o tão temido vislumbre da vida, o toque tão familiar de quem nos observa desde o nas...