eu não me orgulho disto.

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As Tradições e as Tartarugas

Adoentado de um câncer e com seus olhos lubrificados de veias aos saltos, vermelhos ao redor da íris azul gélida, ele tentava salvar uma tartaruga na maca do hospital.
Sobe a luz do abajur, tomou um copo de água da cabeceira e se desfez dos lençóis brancos pesados com todo esforço, devolvendo a criatura para o aquário. - Foi seu último ato antes de notar que havia se desvinculado da máquina que o mantinha vivo.
- As tartarugas respiram fora da água! - lembrou caído no piso frio, rindo da própria farsa que era sua solidariedade, a última.
Imaginava-se morrendo perto do mar olhando o céu de azul celestial após uma viagem pelo continente, nu na beira de um barco adotando enguias de estimação e indo se aposentar na ilha desconhecida dos sonhos de adolescência, lamentou ter esquecido dos últimos dezenove anos de sua vida, estando em dissonância com o planeta, que a cada dia aparentava ser mais estranho à ele. O que pouco sabia sobre si mesmo surgia de pesadelos e da sua considerável fama em ser o filho da inseminação artificial mais bem sucedida de seu país, e mesmo assim esse filho pródigo falecia de câncer por um esbarro além da conta, falecia mais rápido agora sem as máquinas, apenas por tentar socorrer uns répteis de séculos de idade que nunca saíram da domesticação hospitalar.
Entre o câncer e o passado perdido, Victor dividia seu tempo inteiro em clínicas de tratamento pra memória e pra clínicas pra sua doença terminal, ouvindo de seu pai e seus tios (os sobreviventes parentais) que ele necessitava reagrupar a sanidade e desintorromper a sua rotina. Aparentemente Victor tinha laços, acordos, pactos e negócios pra sustentar com o mundo. Todos os dias tomava um lugar na reunião por telefone com seus publicitários e fazia vídeos para o hospital dos quais seus tios eram donos, era de publicidade fácil que o Victor Antes Do Coma alimentava seus dias. Disseram-lhe que foi num acidente pilotando a lancha Saturno que seu corpo havia se desvinculado da mente, gerando o coma. Assim que despertou dele, descobriu o câncer e que modelo de saúde ele tinha hein? Percebeu que não se reconhecia no Victor Que Vivera Antes Do Coma, aquele Victor não morreria por bestinhas verdes tão pequenas, ou será que morreria? Se questionou ofegando pro tapete de pele do quarto.
Arrepiou com erro trágico. Errar era tão raro aquela altura, acertar também, a hospitalização cercava ele de cristais, não havia escolhas. Habitualmente manipulado por cirúrgias e médicos,  se alguém falhava sequer era ele. Errar era uma eletricidade na pele. Ouviu o telefone tocar, sabia que sempre que o apito agudo e distante ressoava a voz que ele ouviria na outra linha seriam apenas mais vozes do passado ensurdencendo seus poucos meses restantes
Deitado aos vinte anos de idade viu as tartarugas saindo outra vez do aquário em fileira, eram teimosas, encharcando a mesa de madeira onde se apoiava a caixa de vidro e rumando à uma queda no terceiro andar da janela que dava para madrugada chuvosa.
- Eu nem gosto de animais, o que estou fazendo? - Questionou batendo a palma na testa e retomando fôlegos
Num último pico de força se levantou aos tropeços e retirou os animais do caminho para queda pondo todos em uma cesta de palha, e atirando pra fora, torcendo pra que elas obtivessem nela alguma proteção.
Provavelmente não teriam, no entanto décadas e década dentro do aquário não eram nada perto dos instantes voando antes de se chocarem com asfalto da avenida.
Enquanto despencavam Victor sussurrou um conselho - apreciem a paisagem...
Era essa a nova graça, a ausência de salvação à vista que o permitia viver cem anos em um.
E ninguém o impediria, o novo ser Humano sem passado e com futuro preso na unhas estava se roendo de vontade de fugir dali e ir na direção ilha desconhecida dos seus sonhos, a ilha era todo o globo terrestre, as águas estavam cheias da eletricidade de enguias, encharcadas do ballet dos golfinhos e da canção grandiosa de enormes Baleias.

Quem precisava de tartarugas?

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