Kang, O Arauto da Liberdade. Capitulo um: Casa Grande

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Antes de se lembrar do próprio nome, um menino foi vendido pelos seus pais a um dono de escravos, uma decisão que o pai julgava ser a mais correta, mas só acarretou na maior decadência da família. O garoto, sem compreender a situação e sem escolhas, foi levado a uma fazenda reclusa -ainda hoje procuro nos arquivos uma localização exata, não a encontro. Os nobres envolvidos se certificaram de apagar todos os registros possíveis do lugar-, ali praticavam uma fruticultura variada junto a plantação de trigo. No início, o jovem foi usado na limpeza da casa do seu senhor. Um orc jovial, usava roupas nobres e possuía varios escravos que cuidavam da sua vaidade, trançando seu longo cabelo negro, limpando sua pele cinza ou sua roupa após as sessões de tortura que praticava constantemente em seus escravos -muitas vezes sem motivos, por prazer. Possuía uma personalidade excêntrica, se irritava facilmente e tinha gostos estranhos, detalhes esses que julgo serem demasiados perturbadores e não merecem detalhamento.
Dentro da casa, apanhava constantemente por deixar meros grãos no chão. Seu senhor -o qual ainda não sabia o nome, pois ele o mantinha em segredo- era um perfeccionista nato, não aturava minimos deslizes nos afazeres dos seus criados, e em todos esses minimos erros, não aliviava nas punições, mesmo em crianças.
O menino ainda sem nome passou três anos dentro da casa grande, passagem essa que foi interrompida por um infortúnio.
O orc não permitia a saída da casa ao menos que todos os trabalhos estivessem finalizados -tarefa essa quase impossível de ser realizada por conta do perfeccionismo de seu mestre. Assim, por muito tempo ficou recluso de companhia. As poucas vezes que viu o mundo exterior, percebeu que a fazenda que morava possuía diversos outros escravos de diferentes idades, guardas armados com lanças e espadas, e ao menos uma vez na semana uma carroça vinda de uma pequena trilha era carregada com sacos de farinha de trigo e frutas.
Ele não foi ensinado como era feito a contagem dos dias, meses ou anos, afinal um escravo não precisa de tal instrução. Sendo assim, ele não sabia ao menos sua idade. Mas com o tempo ele aprendeu a olhar os calendários e a se acostumar com o relógio. Passou a contar seus anos na fazenda, pensando que um dia descobriria seu nome, sua idade e retornaria a sua casa que pensara um dia ser feliz. Não o julgo por achar que saber contar os dias o faria descobrir sua verdadeira idade ou seu nome, ainda era uma criança, se deleitava com sua imaginação e com sua breve esperança, traços esses que foram tirados tempos depois do garoto. "Quando o menor palito chega na metade de baixo do relógio eu tenho que começar a preparar a comida do imundo, ou ele fica estressado e me leva ao parque" pensava o garoto. Já que não sabia o nome do seu chefe, o chamava mentalmente de imundo, porco, entre outros bons adjetivos. O orc, sempre que ia punir seus escravos, os levava a uma sala que chamava contente de parque de diversões, nome um tanto quanto intuitivo, levando em conta a índole do escravista.
Uma vez ao ano, o menino percebia que outro orc vinha a fazenda, imaginava esse ser o pai de seu senhor, pela rigidez na fala e pela idade. Ele não tinha idéia de como era o retrato de um pai, mas pelas poucas conversas que teve com seus companheiros de corrente, teve essa a impressão de como seria um. Essa imagem foi se desenvolvendo na mente do garoto perturbado, uma criança movida a traumas que viu no seu carrasco, a imagem que tanto sonhara em ter. Este outro orc era gordo, barba e cabelo brancos, e muitas rugas no corpo, parecia ter idade avançada e as roupas de nobre quase estouravam no seu abdômen.
O infortúnio ocorreu em um destes dias. O "gordo" -assim o garoto o chamava- chegou na fazenda e sentou-se na cozinha junto ao "imundo" e lá eles discutiam o dinheiro que circulava pela fazenda -o menino não tinha idéia dos números que eles lá falavam, mas girava na casa dos milhões-, os novos escravos que chegavam, os que morriam. Até que em um breve momento de raiva, o "gordo", que antes evitava citar o nome de seu possível filho, o chamou de "Yakka". O menino naquele momento limpava a louça dos dois na cozinha, Yakka não disse uma palavra, apenas levantou, pegou uma faca que estava na pia e agarrou o menino que já estava tomado pelo terror, gritava, suplicava, dizia que não ia nunca falar o nome que escutou. O gordo interferiu dizendo que Yakka falava muito bem do trabalho do menino, e que não julgava ser necessário matar o servo. O orc escutou as palavras do mais sábio e com um único corte arrancou a língua do nosso pequeno sortudo.

 Contos de um imaginário esquecidoOnde histórias criam vida. Descubra agora