Prólogo

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Sinos suaves quebravam o silêncio. Um pai explicava baixinho a sua filha que era devido ao horário de meio dia. A criança olhava ao redor, procurando agitação, porém a única coisa que se movia no local era a aba de seu vestido preto que ela mesma atiçava, enquanto tentava entender aquela situação. Olhava para trás e para os lados, curiosa, contando a dedo quantas cadeiras tinha ao seu redor.

- 10, 11, 12, 13... - fez uma careta pensativa e chamou seu pai, que estava limpando o rosto com um lenço branco que já se despedaçava de tanto o usar – Papai, qual número vem depois do 13? - O pai a encarou, tristonho. Tentou segurar as lágrimas, mas elas saíram sem sua permissão.

O homem ao seu lado lhe abraçou em consolo, chamando a atenção das mais de 30 pessoas que vestiam o mesmo tom do vestido da garotinha. Após alguns segundos o sino voltou, dessa vez estremecendo com o pesar do ar fúnebre. Trazia consigo dois homens com uniformes brancos, luvas cinzas e que seguravam pás. Eles passaram por todos, ignorando o homem que chorava alto na primeira fila de assentos, e começaram a agarrar o caixão. Antes disso, tiraram todas as flores coloridas que haviam instalado por todos os lados; fecharam a tampa do caixão onde eu me deitava, para sempre em silêncio; me deslocaram por mais de três metros abaixo de todos e, por fim, remoeram a terra marrom e seca com as pás, me enterrando no solo.

Eu observei tudo de perto. Estar morta não era doloroso. Meu corpo novo não sentia nada, apenas formigava sem parar, até que me acostumei e esqueci deste detalhe. O que doía de verdade era ver todos os rostos conhecidos, com expressões nas faces que diziam “agora não, por favor”; me angustiava não poder chamá-los por seus nomes uma última vez, perguntando como todos estavam. Agora eu sei como estão de verdade, pelo menos. A garotinha estava perto do pai, ainda tentando processar tudo aquilo, agarrando a mão dele com tanta delicadeza e sensibilidade. Daria tudo para segurá-las uma última vez. No entanto eu já não podia mais fazer isso, e muito menos dizer ao pai dela que iria ficar tudo bem.

A passos curtos, iam saindo uma a uma as testemunhas. O sol ainda estava lá, refletindo brilhantemente o sino da capela e iluminando belamente os cabelos da minha filha e de meu marido. Ou seria ex-marido? Começava agora a questionar tudo aquilo, o pós-morte. Era surreal descobrir que, de fato, existia uma outra vida. Porém estava com medo, admitia a mim mesma, ainda vigiando os dois sentados no gramado. Senti medo em minha vida toda, e agora sentia de novo, em minha morte. Todas decisões que tomei me levaram a este momento, só que ainda queria mais respostas. Só bastava saber perguntá-las do modo certo.

Depois de uma hora o sol parecia ter ficado mais forte e, a luz, mais intensa. Já não conseguia ver além das cadeiras vazias na grama. Já nem conseguia me lembrar o que estava fazendo ali. Se passou alguns instantes – ou foram 7 dias? -, até que uma mulher com um rosto não tão conhecido levar a garotinha com rosto desconhecido para fora de minha vista. O homem ainda chorava, sozinho em seu primeiro dia de luto, girando o anel dourado em seu dedo anelar da mão esquerda. Passou tudo tão rápido diante de meus olhos, nem tive tempo de respirar – se é que precisava mesmo respirar. A garotinha se aproximava, voltando ao local, enquanto gritava “mamãe”, e a cada passo suas pernas cresciam centímetros, carregando sempre em mãos buquês de flores cada vez maiores. Quanto ao homem, foi cada vez se levantando um pouco mais, até que um dia começou a caminhar, a passos largos e confiantes.

Em um último vislumbre de minha vida, só restava a grama e minha lápide. E, nesta mesma grama, flores, anseios descritos em papéis, velas apagadas e um anel dourado abandonado, que outrora eu beijava em mãos que haviam me prometido em cerimônia o “felizes para sempre”. Era o final de todas as promessas, e também do meu tempo naquela vida.

Eu já não pertencia mais ao mundo dos vivos.

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