Heitor
O Sol bate na janela, levemente aquecendo meu rosto, parado sobre o travesseiro, sinto o calor correr pelo meu pescoço, descendo até os pés, forçando-os a se moverem. Sinto um toque suave, porém preciso, na ponte do meu nariz, não queria, mas abri os olhos lentamente, esperando nada além de um cômodo salpicado de plantas e pinturas, as únicas coisas colorindo o cubículo que é meu apartamento. Então, um miado.
Ah, claro, minha gata.
-Bom dia, Perséfone.- ela toca meu rosto mais uma vez. -Okay, okay. Já vou.
Luto contra a gravidade da manhã, que sempre aparenta mais pesada nesse período do dia. Sempre me ensinaram que ela era constante, pelo visto não. Sento na beirada da cama enquanto a felina passa pelo meu colo até o outro lado do colchão, pressionando seu corpo contra o meu estômago, um tipo de abraço, por assim dizer, antes de pular até a prateleira de fotos. Seus pelos alaranjados, agora banhados pela luz matinal, reluzem um dourado característico dela, nunca vi nada como aquilo, ela olha para baixo, na minha direção, como quem pedisse alguma coisa, pelo horário, sei que é comida, mas ela sempre foi misteriosa. Seu corpo como folhas mortas prestes a caírem do último galho da primeira árvore a ser afetada pelo outono, já seus olhos, verdes como a esperança na vida da primeira flor ao ser abençoada pela primavera.
Pulo para fora de meu conforto para atender às necessidades felinas do animal, ponho minhas pantufas macias do Stitch, sua personalidade de manhã é quase idêntica à minha, ando pelo apartamento, por ser o térreo de um prédio que não possuia mais de um andar, o piso era de madeira e o assoalho faz rangidos enquanto ando e, por isso, consegui o local por um preço mais barato. Outros moradores dizem que não pegaram esse apartamento pelo som que os incomodava, mas, pra mim não importa, até gosto, nunca me sinto sozinho.
Perséfone parece ler meus pensamentos e me joga um olhar assustador. É mesmo...
Eu tenho um gato. Que se não me odiava antes, agora odeia.
Dei mais comida que o normal à ela, só para compensar.
Andei pelo apartamento, molhando minhas suculentas e algumas orquídeas, uma samambaia se pendura acima da janela percorrendo o caminho dela ao solo, porém, sem sucesso, não quero pisar em plantas, sempre podo na altura da metade da janela, o suficiente para Perséfone brincar. Abri a janela para apreciar o vento e arejar o ambiente, uma grade metálica protegendo o quarto me distancia do mundo, o Sol entra pelos espaços detalhados entre o aço reforçado, formando padrões de losango no chão.
-Dia bonito.- digo a mim mesmo ao olhar para o céu azul. -Deveria sair um pouco...- olho em volta, me mantenho no confortável... Olho para fora, ou sigo para o desconhecido? -Prefiro ficar.
Sentei no banco perto dos meus quadros, cada um posto na parede após sua finalização, tinham muitos, desciam do teto ao chão, indo de cavernas, para pessoas sobre a chuva, árvores, um banco de parque com um casal nele, o mar... Sempre pude por minha mente em um projeto e terminá-lo sem problema.
Por que não posso agora?
Cerro os olhos e olho a minha tela, há nela um celeiro não finalizado. É isso. Não sei o que fazer. Estou há uma semana sem saber o que pensar, o que desenhar, eu parecia sem vida, sem motivo para existir.
Um bloqueio artístico. Uma tela em branco na minha cabeça na qual eu não podia levantar a mão e colorí-la. Não tenho inspiração.
Ouço uma batida na porta, ela ressoa pelo quarto até chegar ao meu ouvido.
-Quem é?- pergunto, sem tirar os olhos da pintura.
-É a Helena!- diz uma voz, uma amiga.
-Tá aberta.
A moça entra no apartamento, os cabelos negros absorvem a luz do sol com intensidade, sua pele clara contradiz a maioria do que há em seu corpo, ou seja, uma regata mais escura de tom café, o all-star e bolsa pretos além de um óculos de Sol, a única coisa a favor do tempo atual era suas calças bege. Ela fecha a porta com cuidado, se certificando que a gata não saia.
-Você não deveria usar roupas escuras no final da Primavera.
-Oi pra você também, sumido.- Perséfone roda entre as duas pernas da garota, mostrando um pouco de educação felina. -Oi Pers, sua fofa!- diz Helena com uma voz infantil.
Continuo fixado na pintura inacabada, tentando arrumar idéias, motivos para desenhar de novo. Helena me olha e chega até mim, posicionando seu cotovelo em meu ombro, se inclinando para ver o que eu estava fazendo.
-Você com isso ainda? Muda de ideia se não consegue achar algo novo pra fazer.
-É, é, talvez eu deva.- digo enquanto divago entre meus pensamentos, uma idéia nova, será?
-Já sei, vamos dar uma volta, esfriar a cabeça, sei lá.
-Claro, claro...- a imagem se torna mais clara, nítida, mas não o suficiente, talvez se eu me concentrar mais...
-Heitor, alô? Você tá me ouvindo?
-Aham...- eu vejo, uma árvore, uma flor arroxeada, um local completamente novo. Mas preciso ver mais...
-Acho que esse lugar ferrou a sua cabeça, sério...- diz Helena, preocupada.
-Verdade...- as plantas se mexem, tudo gira ao meu redor e, ao fundo, vejo alguma coisa, uma flor alta e bem amarela. Só mais um pouco...
-Já chega!- Helena grita.
Voltei à realidade.
Mas esqueci o resto.
-Olha só você aí, sozinho, não consegue ver? Eu sou a única pessoa do nosso grupo de amigos que ainda tem contato com você e você age assim?- ela resmunga em um tom alto e dá um pisão no chão, indo em direção à porta.
-Talvez eu esteja assim por todo mundo se afastar de mim.
-Não, Heitor, você se afastou de todos nós.
Ela bate a porta e sai do cômodo. Perséfone olha pra mim com pesar, ela provavelmente concordava com a garota. Eu levanto e vou até o espelho, estou mesmo acabado, com duas olheiras enormes abaixo dos olhos, meu cabelo mal pode ser considerado bem tratado, com suas mechas onduladas caindo sem padrão organizado, meus próprios olhos me encaram, uma escuridão estranha me pedindo para parar. Troco de roupa para deixar o peso da manhã para trás e deito novamente na cama, pra relaxar e apenas para desistir. Ponho a cabeça no travesseiro, pensando que isso ia me ajudar.
Mas não ajuda
Perséfone pula ao meu lado.
-Acho que elas está certa, Pers. Não tem ninguém aqui comigo.- ela se aconchega perto da minha barriga. -É, tenho você. Obrigado.
Sinto uma lágrima correr pelo meu rosto, só estou assim por minha causa. No meu bolso percebo um lápis vermelho, um que tenho desde criança, o último presente da minha vó antes dela morrer, me recuso a usá-lo. É apenas para desenhos especiais. Funciona como amuleto da sorte para novas ideias, pra me ajudar em bloqueios como esse.
Mas nada pode me ajudar.
Não agora.
Fecho os olhos, pronto para dormir e acordar mais tarde, esperar essa angústia passar, penso em Helena brava comigo, ela estava certa. De repente, minha mente me leva para um campo, a vegetação dourada de uma plantação de trigo dança ao meu redor, árvores negras de casca maciça erguem sob meus pés, me levantando aos céus e, ao longe, a flor amarela borrada, não sei o que pode ser, mas talvez descubra um dia. Então, o solo treme, minha visão foca em uma construção que apareceu do nada, um celeiro, uma luz vermelha surge da minha mão e aponta para o prédio, colorindo-o, antes da árvore, a que eu estava, desaparecer.
Eu estava caindo, em queda livre, pronto para acertar o solo quando acordei.
Botei a mão no rosto, suando frio, antes de perceber que eu não estava em casa, na minha cama. Eu estava no campo dourado.
O do sonho
E, na minha mão onde saía a luz avermelhada estava o meu lápis. Ele apontava para além dos campos.
Para uma construção vermelha.
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Girassol de Óleo
RomanceApós uma briga e o estresse de um bloqueio artístico, Heitor Helianthus se encontra preso. Não em sua mente, mas no lugar que ele não sabe o que fazer, o que pensar, como agir... uma tela em branco.