Perséfone
Meow, meow meow, me meow... Meow meow...
Okay, quem você acha que eu sou?
Eu sei pensar.
Acordo na cama como em qualquer dia, o colchão macio sob meu corpo e o lençol fresco em meu pelo, abro os olhos lentamente. Me alongo, esticando a coluna e as patas dianteiras, porém, algo parece estranho. A cama está mais leve, menos densa, e mais importante...
Está vazia
Onde foi parar o Heitor?
Meu dono? Minha fonte de mimos?
Isso não vai ficar assim.
Tenho que achar a única pessoa que vinha aqui em casa. Helena. Olho para a janela semi-aberta, minha escapatória. Tomo cuidado para não derrubar nenhuma planta, todas são tão bem cuidadas que seria pecado danificá-las. Olho para trás mais uma vez, as marcas feitas pelo seu corpo deitado no colchão ainda estão visíveis, eu espero poder tê-lo de volta.
Sorte minha que nosso quarto fica no primeiro andar, pulei da altura relativamente baixa, para uma gata como eu, as esponjas das minhas patas tocaram a grama do quintal do prédio, senti o tremor da terra com o meu peso enquanto eu amortecia a queda. Estou novamente no mundo de fora, carros passam rápido de um lado para o outro, pessoas andam apressadas com suas rotinas, barulhos vindo de todos os lugares ensurdecem meus ouvidos, quase me fazendo voltar para casa. Tudo é tão cinza, tão morto.
Faz sentido o meu dono ficar em casa o dia inteiro.
Mas eu estou aqui por ele, sem ele em casa, ela se tornaria tão cinza e morta quanto o mundo de fora. Andei pelas calçadas cheias de humanos estranhos, falando em celulares ou segurando um retângulo marrom ou preto, nenhum olhando para uma gata maravilhosa como essa aqui passando na frente deles. Já tinha sido levada algumas vezes para a casa de Helena, então eu sabia o caminho, não era problema chegar, o problema era fazê-la entender o que aconteceu.
-Que gato mais bonitinho- disse um homem, ele cheirava a peixe, mas não um peixe bom, um peixe podre, talvez. Não parecia bom. -Vem cá com o tio.- ele pôs a mão nas coxas, sobre uma calça marrom esfarrapada, sua regata branca possuia manchas amareladas grotescas. Contraí o corpo, eu não ia no seu colo, moço.
Ele esticou a mão, as unhas roídas tentaram tocar o meu pelo perfeito então desviei, entrando em um beco. Ele me seguiu bloqueando a entrada do beco, que também é a única saída, olhei em volta, as paredes são bem irregulares, por isso pulo nos tijolos tortos saindo das construções, subindo para o telhado. Vejo ele lá de cima, não creio que um homem desses veio na minha direção, nem pra ser uma criança.
Do topo do prédio, consigo ver todos os meus arredores, é muito belo, o ar fresco corre sobre as telhas. Nunca pensei em subir aqui, deveria vir mais vezes.
O horizonte de residências se estende à minha frente, me convidando a pular de telhado em telhado até chegar ao meu destino. Me concentrei para identificar o cheiro de Helena no ar, estava misturado com a fumaça da cidade, alguns animais de rua e muitas outras pessoas, era sútil, mas estava lá. Caminhei com a trilha em mente, não tinha as ruas para me guiar mas eu tinha o mundo inteiro para usar como estrada.
Demorou um pouco mas alcancei meu destino, uma casa simples, rodeada de plantas, como o quarto do meu dono, vinhas sobem por uma das paredes perto de uma varanda de entrada ovalada, a residência tinha uma cor de tempestade, uma nuvem carregada no meio do subúrbio. Desço com elegância do telhado da última casa antes da rua movimentada. Me apresso e cuido para não ser atropelada ao correr pela avenida, pulando o muro e parando na porta da casa.
Arranho a porta quando percebo que Helena não virá com os meus miados, ela parece não se importar.
Como um humano ignora um choro felino?
Penso que ela apenas não ouviu para não me magoar com tal atitude, dou a volta na entrada, indo para a pequena área ovalada coberta, minha tentação de estilhaçar aquelas poltronas é inimaginável, mas me contenho. Vou para os fundos da casa, lá há uma piscina não muito interessante, ela é grande, mas tem água. Não é pra mim.
Vou até a porta dos fundos e tento novamente, arranho a porta e mio mais alto que antes então pulo na janela ao lado. Ela está lá dentro, mexendo nas suas plantas, fazendo um almoço que possui um aroma maravilhoso, dou tapinhas na janela, esperando ela se virar na minha direção.
Quando ela se vira, me olha com uma cara de espanto, surpresa por estar alí.
Humanos nunca entendem as situações mais graves.
Helena
Perséfone me olha, cerrando os olhos, queria que eu fizesse algo. Ela deu um tapinha na fresta da janela fechada, incomodada.
-Ah, claro.- ando até a gata e abro a janela. Ela pula para dentro.
-Meow.- ela mia, como se estivesse conversando comigo.
-O que você está fazendo aqui?
-Meow, meow.
-Ah claro, eu consigo muito entender você.
Ela fechou a cara. Agora a gata ta brava comigo. Ela andou pela casa, procurando alguma coisa, analisando cada canto, cada móvel, cada decoração. Ela subiu no braço do sofá e se sentou perto da mesinha ao lado do estofado, ela continha fotos minhas e uma de Heitor. Perséfone deu um toque na imagem do rapaz e me olhou.
-Okay, Heitor, o que é que tem?
Ela se deitou no sofa, como se estivesse dormindo aninhada com alguém.
-Você foi dormir?
A gata rosnou.
-Calma, Pers, eu errei, okay. Vocês foram dormir?
Ela então fingiu dormir um pouco para depois acordar em pânico, olhando para os lados e rodando o lugar onde ela tinha se aninhado.
-Meow.
-Ele... sumiu?
A gata olhou para mim, aparentemente em luto, o que aconteceu depois de eu ir embora? Ele desapareceu por minha culpa? Eu preciso achá-lo.
Almocei rapidamente, não tive tempo para apreciar a comida com a mente tão pressionada, além de ter uma gata me encarando. Fui para o carro e dirigi até o apartamento de Heitor, a janela estava entreaberta, provavelmente por onde Pers saiu, entrei no prédio com o codigo que possuo, virei a maçaneta da primeira porta e ela se abriu.
-Nunca está trancada, não é?- digo ao entrar.
O local estava desértico, bom, mais do que o de sempre. Esse lugar já é depressivo com o Heitor, imagina sem ele.
-Heitor?- chamo, desesperada.
Perséfone miou, tensa, subindo na cama com lençóis amassados, ela se aninhou em um espaço com uma marca que era claramente o formato do corpo do rapaz.
Mas não tinha nada.
A gata lacrimejava, chamando o dono, porém sem resposta.
Olhei em volta, em armários e prateleiras, seu celular ainda estava na mesa e seu lápis vermelho tinha sumido.
-Ele nunca sai sem os dois.- sussurrei para mim mesma. Olhei para a pintura inacabada dele.
Só se ele nunca saiu.
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Girassol de Óleo
RomanceApós uma briga e o estresse de um bloqueio artístico, Heitor Helianthus se encontra preso. Não em sua mente, mas no lugar que ele não sabe o que fazer, o que pensar, como agir... uma tela em branco.