Relato

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Quantos traumas uma pessoa é capaz de superar ao mesmo tempo?
Foi o que eu me perguntei na terça-feira.
Três dias após o surto.
Dois dias após o assalto.
A segunda-feira passou como uma ilusão,
Mas na terça o trauma estava apresentando sinais.

Mas começando pelo início:
Sábado, 12 de novembro de 2022.
Por volta das 23 horas.
Cheguei em casa enquanto minha mãe e meu irmão saiam para pizzaria.
Eu planejava chorar no colo da minha mãe, de novo.
Mas ela não estaria lá pra me apoiar, então chorei sozinha.
Não era novidade,
Já fizera isso mais de mil vezes antes.
O choro saiu como uma tsunami,
E a dor delirante no peito
Enquanto falava alucinações para mim e para Deus,
E para Márcia, o vaso,
Tudo o que eu estava sentindo,
Implorando para que a dor passasse,
Para que eu esquecesse aquele que perdi,
O filho da Márcia,
Aquele que me deixou de coração partido e sangrando.
Desejei tomar um coquetel de remédios
Que me fizesse dormir, um pouco ou muito.
Implorei a Deus misericórdia
E pedi — exigi — que algo de pior acontecesse,
Qualquer coisa que fizesse aquela dor
Que eu estava sentindo
Se tornar pequena, insignificante.
Também desejei que a dor fosse física,
Então peguei o primeiro objeto perfurante
Que vi pela frente (um parafuso bem grande)
E desferi golpes contra o meu próprio braço,
Mas consciente de que não poderiam ficar marcas
Que gerassem perguntas.
Então eu me odiei por não poder me ferir
Mais do que aquilo.
Chorei até cair no sono.

Domingo, 14 de novembro de 2022.
Fui trabalhar no dia seguinte.
Durante todo o dia,
Tudo parecia dar errado,
Uma venda na qual cometi um erro enorme,
E deixei o meu gerente bem bravo,
Outra venda que deu errado...
E o meu humor se tornando mais negro.
A cobrança que eu mesma colocava sobre mim,
Me sobrecarregando a ponto
De curvar os meus ombros.
A frustração imensa e devastadora que eu estava sentindo,
Me sufocando e me tirando ar dos pulmões.
A angústia crescente dentro de mim.
E a cada 5 minutos os meus olhos pousavam sobre o relógio.
20h30m...
Respondo meu psicólogo, ele perguntou se estou bem:
"Se eu falar que sim vou mentir, mas acho que dá até quinta."
(Exatas palavras).
Volto ao trabalho.
Dez minutos depois ele chega.
Ele mostra a arma e anuncia o assalto.
E tudo é um borrão (lembro de cada detalhe).
E depois o tiro, alto.
E os piores pensamentos.
E ele saindo com a arma na mão e
"Eu vou morrer agora."
E depois choro.
Sangue e correria.
Choro e água, engasguei.
E no meu celular eu chamo a primeira pessoa:
O filho da Márcia.
Eu só preciso dele, mas ele não está disponível pra mim.
E dói pensar que estou sozinha com o meu medo,
Meu trauma.
E o pensamento constante
De que aquele tiro deveria ter sido em mim,
Foi o que eu pedi na noite passada,
Exatamente o que eu precisava.
Aquele tiro era pra ter sido em mim.

Terça-feira, 15 de novembro de 2022.
Por volta das 12:30.
Quantos traumas uma pessoa é capaz de superar ao mesmo tempo?
Hoje eu acordei e a primeira coisa que eu pensei foi nele,
E em como ele estava nos meus sonhos daquela noite,
No abraço que a gente se deu, no meu sonho,
No filho da Márcia.
Depois de alguns minutos me lembrei do assalto.
E entendi que, mesmo uma das piores coisas que me aconteceu,
O trauma mais recente não era maior
Do que a dor de ter perdido ele.
Aquele tiro era pra ter sido em mim.

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