Único

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― Não é uma escolha fácil ― Ouvi a voz de Shotgun Mary, a mulher que lutava ao meu lado por tanto tempo que sempre a considerei uma irmã, apesar dela nunca ter concluído seus votos. Shannon confiava nela e isso era o bastante para mim.

― Fez seus votos, Trice ― A voz de Lilith me lembrou, me assustando um pouco ― Quando os fez, jurou amar somente a Deus ― ela completou.

― Pobreza, obediência e castidade ― Eu listei em voz alta, sabendo bem do que estavam falando ― E então, me tornei uma guerreira...

― Mas não deixou de ser uma freira, devotada a Deus, com as mesmas regras de qualquer outra ― Lilith falou com severidade mais uma vez ― Deixamos o amor mortal para renascermos no amor por Ele.

― E mesmo assim, continuamos com nossos corações mortais ― Eu falei baixo o bastante para que apenas elas ouvissem ― Corremos os mesmos riscos que qualquer outra pessoa corre de se apaixonar, de se machucar e morremos como todo mortal morre.

― Mas com a certeza da vida eterna, Trice ― Mary falou pela primeira vez ― Com a fé na ressurreição, lutamos cada uma de nossas batalhas sabendo que pode ser a última e morremos na esperança de ressuscitar ao lado de nosso deus pai, todo poderoso, como diz a oração que Ele nos ensinou.

― Ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus. Está sentado à direita de Deus pais todo poderoso, donde há de julgar os vivos e os mortos ― Lilith rezou o trecho que Shanon se referia na oração do Credo.

― E como uma freira guerreira, é seu dever proteger os homens dos demônios que querem possuir seus corpos e dos pecados que tentam corrompê-los ― Essa sempre foi a missão que me guiou para lutar com cada pela Ordem da Espada Cruciforme. ― Como membro da Ordem, deve garantir que as portas do inferno fiquem fechadas para sempre. É assim desde Areala, e será assim depois de nós ― Mary me lembrou ― Shannon morreu por isso, eu morreria por isso, Lilith protegeu Ava da Tarask para que o halo não fosse levado para lá. Mas agora que sabemos o que ele significa, Trice, sabemos o que temos de fazer.

― Ela vai morrer ― Eu falei, deixando algumas lágrimas caírem.

― Sim, ela vai ― Mary concordou.

― Mas nem era para ela estar viva ― Lilith me lembrou ― Não é natural, você sabe, vai contra as leis Dele.

― Será que estes não foram os planos Dele quando o halo foi parar com Ava, ao invés de se tornar seu, Lily? ― Perguntei, tentando encontrar a mão daquele que jurei dedicar minha vida, como se assim, houvesse um motivo para não destruir o halo e então, Ava.

― Se foi o plano dele, é aqui que ele acaba, Beatrice ― Mary foi dura, como nunca vi sua voz ser ― Precisa fazer isso. Sacrificar a vida para Ele é mais fácil do que sacrificar seu coração, mas quando você faz seus votos, você jura respeitar o desejo dele, com sua fé.

― Eu já tive tantas batalhas ― Pela primeira vez, tive coragem de falar ― Mas nunca pensei que lutaria nessa batalha que estou lutando agora. Amar Ava não foi planejado, não sei se foi o plano Dele para me fazer chegar aqui, não tenho como ter certeza de nada. Mas como freira, a castidade é uma promessa e não posso quebrá-la. Eu já sabia da minha sexualidade quando a fiz, sabia que minha família queria que eu fosse freira para não enfrentarem isso. Se eu não tivesse aceitado o convento e me tornado parte da Ordem, eu penso: seria diferente? ― Eu às vezes pensava mesmo sobre isso, como teria sido tentar corresponder às expectativas dos meus pais, como tentar ser quem eles queriam, talvez sair com garotos, talvez beijar rapazes. Mas eu sabia que, no final, me apaixonaria por uma garota. Às vezes eu pensava sobre a maciez de ter as mãos de uma garota nas minhas ou do sabor de morango nos meus lábios, vindos do brilho lábio que ela usaria. ― Mesmo que ninguém fosse saber que eu quebrei a castidade, Ele saberia. E quebrá-la significaria quebrar outro voto, a obediência. Não poderia continuar parte da Ordem se os quebrasse. Meus votos são minhas promessas. Eu os fiz, são minhas escolhas. ― Eu admiti. Havia pensando tanto sobre isso nas últimas semanas, quando percebi que estava apaixonada por Ava.

― Você confessou seus sentimentos a Ava? ― Mary me perguntou curiosa. E eu pude perceber que não havia maldade ou julgamentos em suas falas. Ela só queria me entender. Pela primeira vez, senti que ela queria apenas ser minha amiga.

― Não, eu os confessei apenas para mim. Preciso me confessar ao Papa Duretti, quando puder, só ele poderá me absolver ou então, me excomungar ― Falei, sentindo o peso de cada palavra. Talvez fosse um exagero meu, mas algum voto eu quebraria. Obediência ao quebrar o mandamento de não matarás ou então, castidade ao beijar Ava.

― Duretti não vai te excomungar depois que você destruir o halo e proteger o nosso mundo da Tarask ― Lilith me falou, com esperança em sua voz.

Enchi meu peito de ar. Era aquela decisão que eu estava relutando em tomar. Se seria mesmo eu quem destruiria o halo. Ava havia pedido que fosse eu e então, eu aceitei. Eu só não sabia que seria tão doloroso fazer isso. Só não sabia que choraria tantas lágrimas por um coração que eu jurei que nunca seria partido.

Quando meu pranto cessou, com Mary e Lilith ao meu lado, apenas olhando o sol se pondo no horizonte além do mar, eu levantei a cabeça. Estava determinada, estava na hora de destruir o halo.

― Estaremos com você ― Mary tocou meu ombro e eu assenti, antes de me virar e caminhar em direção a minha batalha mais difícil: Destruir meu coração.

Fim

Destruindo meu coraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora