Não, não é o livro de Clarice. Peguei emprestado o nome, que já havia sido pego emprestado por ela. Mas uma das únicas formas de definir aquele tempo é como selvagem, pra nós (e talvez para nossos pais também). E nossos corações eram selvagens. Não éramos presos às leis dos adultos e, caso fossemos, escapávamos delas. As ruas, prédios, pistas e campos eram nossa selva. Ao descer do ônibus, as garras e asas do meu coração se libertavam. Timidez, solidão, medo e asma sumiam. Podíamos correr pelos prédios, brincar de pega-pega, esconde-esconde, soltar bombas, jogar bola, gude, tomar picolé, sorvete, comer pastel, sermos rappers, agentes secretos, super-heróis... A única barreira talvez fosse uma mãe ou tia preocupada, mas, não infelizmente, elas sempre eram tapeadas pela nossa malandragem inocente. As cigarras eram sinal de que era hora de descansar, e de manhã os pássaros eram o chamado para recomeçar as aventuras. Ao abrir os olhos, aquela tranquilidade de saber que estava lá, longe da escola, livre pra ser livre. Vó botava café na mesa, pão com ricota e manteiga. A gente catava moeda pra ir no tio do pastel (será que ele vende até hoje?), na coroa do geladinho e também no acarajé de lá. A gente sentava lá na frente (talvez filósofos como Platão, Aristóteles, Sócrates e muitos outros tenham sentido isso, mas, cá pra nós, a gente sabia muito mais do que eles) no batente do prédio e falava da vida, de qualquer coisa que viesse na mente.
Talvez eu nunca mais venha a sentir tanta liberdade quanto naquele momento. Talvez quase uma certeza. Você também, eu imagino. Nós todos. Talvez você entendesse mais do mundo dos adultos, dentre muitos talvezes. Quem sabe, se nós olharmos o mundo daquela mesma forma simples e vasta, não voltemos a ser selvagens?