A Sacerdotisa

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"Eu não sou feliz." A sacerdotisa iniciou. Jogava palavras de desprezo próprio ao vento mais uma vez.
Não era, este ocorrido, em seu local de costume, o pequeno lago ao lado da catedral, rodeado de rosas flores e calmos pássaros. Estes, já haviam passado a cantar mais alto para sufocar as palavras depreciativas que iria vomitar de seus lábios, enquanto as flores se fechavam em sua presença.
Desta vez, estava em um quarto vazio, não a pertencia, não pertencia a ninguém vivo. Pensara ela que seus pensamentos incoerentes não incomodariam os espíritos.
"Me falta algo." A sacerdotisa continuou.
Não sabia ela o que lhe faltava, já havia teorizado muitas coisas. Não era amor, pois não queria amar, não era estudo, pois já havia estudado o que lhe interessava, não era amigos, pois teve sempre seu grupo, que mesmo quando estava longe, poderia ser facilmente substituído pelos patos do lago. Ao fim de seus pensamentos ela sempre chegava à conclusão de que lhe faltava propósito.
"Mas como ter propósito se não há mais o que conquistar?" A sacerdotisa indagava. Para ela, era como se o propósito de sua vida toda tivesse sido escalar um monte, não qualquer um, mas o monte, e após chegar no topo, não viu nada acima para tomar como próximo rumo.
O ruim daquele que conquista o seu mundo é não ter mais o que fazer, além de sentar inquieto e esperar que suas conquistas sejam desfeitas.
Para a sacerdotisa, ela estava no topo, havia conquistado tudo que lhe cabia conquistar, havia aprendido tudo que lhe cabia aprender. Seu objetivo era simples, não queria se decepcionar caso não houvera como conquistá-lo, mas por hora, se decepcionou por não ter mais o que alcançar.
"Não vivi ainda." A sacerdotisa explicou. Para ela, uma experiência só valeria se houvesse sido completa, era um pensamento simples, teria como um corredor dizer que já havia corrido, se o mesmo nunca parou? Um jogador de xadrez que nunca pôs fim ao seu jogo, teria ele realmente jogado?
Um pensamento perigoso para aquele que se sentia incompleto.
"O que me completaria, é a morte." A sacerdotisa finalizou seu pensamento. Havia tomado coragem para admitir o final lógico de suas conclusões, mas não para tomar as ações necessárias para concluir a sua hipótese, mas, pelo menos, era um passo na direção que gostaria de tomar.
Ainda assim, teria ela um pensamento contraditório em sua mente, se não iria mais viver, teria ainda como se sentir completa? Talvez, o que lhe faltava não era a morte, mas aceitar a impossibilidade de se completar, já que, se morresse, não teria mais vida, não teria mais como descobrir se estava completa ou incompleta.
Mas esse poderia ser o propósito. É como quem derruba um vaso de porcelana no chão, sem analisá-lo, não há como discernir se alguma rachadura se formou.
Desse modo, um otimista deve assumir que o vaso se manteve intacto e deixá-lo de lado, para se manter em um estado indecifrável entre rachado ou intacto.
O único defeito em sua lógica? A sacerdotisa nunca foi otimista. Imaginava ela, não, tinha certeza ela que até mesmo morta, seria infeliz, incompleta. De algum modo iria saber que o vaso rachou.
Estava infeliz.
Estava incompleta.
E não poderia simplesmente acabar com sua vida, não por algum motivo relacionado à sua religião, mas pelo medo de tomar uma escolha errada que seria permanente. Se sentia medrosa, mas não queria curar seu medo.
"Estou no topo." A sacerdotisa engoliu sua saliva e abriu a janela do quarto. Em todos os possíveis sentidos, aquela era a janela mais alta da grande catedral. Durante sua busca por um canto quieto, sempre reclamou de algo mínimo, até chegar ali, não havia mais como subir, ironicamente, só caberia a ela descer.
A janela dava abertura a uma vista linda, quando jovem, a sacerdotisa obteve sua certeza no Criador por meio da visão bela que a rodeava. E, ao ver novamente aquilo, ideias para completar sua vida fluíram em sua mente, no meio da tempestade, ela ouviu apenas algumas gotas de propósito, pintaria.
No final de cada noite, até o começo de cada dia, observaria o dourado nascente sol e pintaria com habilidades rudimentares, não lhe trazia felicidade fazer aquilo, pelo contrário, era exaustivo e digno de dezenas de reclamações.
Porém, ela pintou.
Estava infeliz.
Mas a pintura estava completa.
O perigoso pensamento chegou aos seus ouvidos no final da décima terceira noite, ao fitar que a última gota de tinta estava seca, a sacerdotisa declarou o fim.
Abraçou sua pintura, rente ao rosto, tomou cuidado para que as estranhas lágrimas não atingissem a tela, não entendia aquele sentimento.
Abriu a janela, observou que o dourado céu estava com o tom exato que havia escolhido para pintar. Colocou seus pés para o lado de fora, se firmou no parapeito, manteve a pintura segura em seu abraço e tomou a decisão.
Era infeliz.
Mas era completa.

A SacerdotisaOnde histórias criam vida. Descubra agora