Há muitos ciclos atrás, havia um homem de aparência não extravagante e costumes simples que tinha uma habilidade fantástica. Ao início de cada ciclo lunar, ele sonhava nitidamente com o que viria a ser a sua morte. Quando o homem acordava, ele começava a se lembrar repetidas vezes de seu sonho, pensando no que viria acontecer com ele pelo passar dos dias e se a sua morte de fato iria tragá-lo para o outro lado.
O homem quase que inconscientemente buscava incessantemente evitar tudo aquilo que pudesse acarretar na sua morte e por conseguinte, ao iniciar um novo ciclo lunar, tinha um novo sonho que contava uma narrativa mórbida diferente da anterior, indicando que tinha conseguido passar pelo que lhe levaria a óbito e agora deveria redirecionar sua atenção a um novo desafio mortal.
Passou anos fazendo o mesmo: sonhando, pensando e sofrendo com o desgaste de sua mente que não mais pensava no que precedia o finamento de sua carne.
Ao sonhar que um animal o devoraria, passou a permanecer somente em grandes cidades.
Ao sonhar que sua mulher tramaria sua morte ao lado de um amante desconhecido, jogou as alianças fora.
Ao sonhar que morreria envenenado, nunca mais aceitou alimento de outrem.
Ao pensar que o animal que o mataria pudesse estar na cidade grande. Se mudou para um terreno seguro longe da cidade e do campo. Isolado de tudo e todos.
Ao pensar que um amante desconhecido capaz de tramar sua morte com sua ex futura esposa poderia ser seu amigo, desfez a amizade com todos e nunca mais se relacionou.
Ao pensar que o alimento poderia ser envenenado por si próprio durante a aplicação das receitas, passou a comer somente as mesmas coisas que já conhecia.
Anos e anos se passaram até que o raciocínio decaiu, a carne amoleceu e o espírito não mais detia o mesmo brilho. Mas continuou sonhando e continuou a buscar subterfúgios contra seu possível, esperado e rejeitado fim.
O homem estava vivo, porém velho e a idade se aproximou o suficiente para conceder à morte o poder do decreto terminal.
A dona morte, vendo que se tratava de um caso crítico onde não poderia mais permitir aquela alma habitar um corpo já tão avelhentado, tratou de priorizar a situação e encarar o velho.
De frente com o velho, a morte anunciou sua chegada com sublime calma e respeito pelo momento derradeiro que chegara ao homem que tanto fez para a evitar. O velho assentiu a chegada da morte em prantos soturnos de quem já sabia que o inevitável batia a porta.
A morte o beija, o abraça e lava o seus pés. E o homem, de luto, celebra seu premortem com o labor de suas lágrimas, ao descer seu rosto, guiadas por suas rugas já tão contorcidas pelas feições de amargura.
Naquele momento o homem percebeu...