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Esta manhã, antes de sair para trabalhar, minha mãe me acordou pedindo que eu não esquecesse de lavar a louça, e cá estou eu esfregando uma panela até que ela fique brilhando. Sabe quando você está na rua e cria desafios na sua própria cabeça do tipo "preciso chegar em tal lugar antes que aquele carro vire a esquina"? Pois pra mim esses desafios evoluíram para outros âmbitos, desde que minha mãe um dia comentou que homens não sabem ariar uma panela direito eu me esforço pra mostrar a ela que eu sim. Não sou do tipo que fala "nem todo homem", o problema aqui foi ela ter duvidado da MINHA capacidade. Então, depois de 10 minutos esfregando a palha de aço no fundo do objeto, jogo água para tirar o sabão e vejo que finalmente consigo ver meu reflexo um pouco mais nítido que da última vez, vejo meus cabelos crespos, a forma oval do meu rosto, já é um avanço desde a última vez, então desisto por hoje e termino de lavar os outros utensílios que estão naquela pia.

Enxugo minhas mãos e pego meu celular que estava carregando em uma mesa próxima de onde eu estava, na cozinha mesmo, já que a casa é pequena e não tem uma sala de jantar, a mesma mesa que nem era mais usada nas nossas refeições devido a rotina de trabalho e estudos da minha família. Normalmente acabamos cada um comendo em seu próprio quarto na pressa ou algumas vezes até no trabalho mesmo, e isso é evidência de um traço muito forte na minha família: meus pais são do tipo que não medem nenhum esforço para trabalhar, mãinha é costureira em uma loja no centro, sai de casa cedo para ir trabalhar, já painho recentemente se tornou gerente de uma loja de departamentos no shopping, o que me deixa muito orgulhoso dele, ele é um homem muito inteligente, teria se dado muito bem na faculdade, mas começou a trabalhar quando ainda estava no ensino médio.

No meu celular vejo um nome que há algum tempo já não via. João foi um colega de classe no meu tempo de ensino médio, estudamos juntos por três anos, não éramos tão próximos, mas eu o ajudava bastante com algumas matérias. Ele tinha um grande problema para aprender, e muita gente tratava isso como "burrice" ou desinteresse, mas eu via que na verdade ele só precisava de um empurrãozinho. Uma coisa que sempre admirei nele é que ele poderia só me pedir fila como todo mundo, mas não, ele sempre me pedia ajuda, ele pedia pra aprender, e ele ficava feliz como uma criança quando aprendia. Abri o Instagram para ler a mensagem que ele tinha me mandado:

U_Jao: "E aí Zé, beleza?"

Pobrerdo: "Oii João, quanto tempo. Tudo certo, e você?"

U_Jao: "Tudo bom também. Olha, posso te fazer uma pergunta sobre o ENEM?"

Pobrerdo: "Oxe, pode homem, diz."

U_Jao: "Tu sabe dizer quanto precisa ter pra passar em Educação Física?"

Pobrerdo: "Ah, aí vai depender do ano, sabe?"

Eu expliquei para ele toda a questão das notas de corte, da diferença de cada universidade, notas mínimas e pesos e quando falamos sobre a prova de Ciências da Natureza ter o maior peso para o curso que ele queria, ele me disse:

U_Jao: "Eita, isso é Química, Física essas coisas né? Me lasquei agora."

Pobrerdo: "Nada velho, tu sabe que se tu se dedicar tu aprende."

U_Jao: "Eu aprendia quando era contigo kkkk, por falar nisso, tu bem que poderia me ajudar né?"

Pobrerdo: "kkkk mano, eu não garanto não visse. Faz tanto tempo que eu não estudo pro ENEM. Acho que nem lembro direito dos assuntos, talvez eu te atrapalhe mais que ajude."

E era verdade, em partes, embora eu estude Bacharelado em Física na UFPE, o modo como os assuntos são tratados no ENEM são um pouco diferentes do que eu estou estudando agora. Mas eu também não queria me aproximar dele novamente, apesar de gostar de ensinar a ele, naquele tempo havia algo a mais nas minhas intenções. E sim, esta é a famosa história do menino gay nerd que se apaixona pelo hétero bonitinho, e eu não queria que se repetisse, não comigo. Conheço muito bem a minha capacidade de ver coisas onde, com toda certeza do mundo não tem, mas eu vejo e ainda acredito firmemente. Então não, não vou dar brechas para esse tipo de loucura de novo, até porque ele namora.

U_Jao: "Eu confio mais em tu que em qualquer professor."

Pobrerdo: "E tu acha que eu como essa pala?"

U_Jao: "Na moral, pô. Quando tu explica eu entendo bem melhor, aposto que se tu revisar rapidinho o assunto tu lembra na hora. Duas aulas por semana, R$50,00, a gente começa segunda, bora?"

Agora ele tocou no meu ponto fraco, ontem mesmo eu estava olhando a última edição do Halliday e pensando em comprar, meu problema era exatamente o dinheiro. Pensei em conseguir um emprego temporário, mas não está fácil pra ninguém, e além de tudo eu preciso ajudar com a casa, então precisaria ser um trabalho de meio período. E eu ainda estou de férias, poderia aceitar só durante esse tempo que não tenho aulas né? E eu também já sou adulto... Já sei lidar com meus sentimentos, ou deveria, não é José Roberto? Sim, deveria!

Pobrerdo: "Falando com jeitinho e educação desse jeito né... Eu tenho alguma escolha?"

U_Jao: "Até segunda então. Tu lembra o caminho da minha casa?"

Pobrerdo: "Eita, não, é na Macaxeira ainda?"

U_Jao: "É, vou te mandar a localização. Qual o teu Whatsapp?"

Passei o meu contato e combinamos tudo para o dia da aula que começa daqui a quatro dias, tempo o bastante para, pelo menos, fazer o meu planejamento de assuntos que estudaríamos e preparar minha cabeça para não fazer a linha Alice no País das Maravilhas. Mais tarde nesse dia eu deitei pensando no quanto eu era besta quando mais novo, as paixões platônicas que eu tive não faziam o menor sentido, com certeza eu já era outra pessoa agora, nada daquilo vai se repetir.  

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