Fechei os olhos sentindo a água descer pelo meu corpo tentando acalmar meu nervosismo, não tem nada melhor do que um banho gelado depois de uma manhã de faxina, especialmente nesse calor infernal de Recife. Eu revisei o conteúdo todo que planejei para estudar hoje com João, mas eu ainda tenho medo de que haja algo do assunto que eu não saiba ou alguma questão que eu não consiga responder. João parece confiar muito em mim, e eu não quero decepcionar. Além disso, o ENEM me assusta mais que qualquer prova que eu já tive na faculdade. Mas, eu já aceitei, não dá mais pra dar pra trás. Até porque se der errado serve de aprendizado, não é?
Então, depois de me vestir e pegar minha bolsa, saí para o ponto de ônibus junto com a minha mãe, ela trouxe umas coisas do trabalho para fazer em casa durante o fim de semana e por isso só vai no turno da tarde. Ela diz que trabalha melhor de noite e pelo visto insônia é uma coisa de família, já que enquanto ela dava os últimos retoques nas peças, eu terminava o planejamento para esta tarde e meu pai roncava no sofá "assistindo" um filme.
- Eu tô achando esse céu tão escuro, meu filho, você não prefere pegar um guarda-chuva em casa não?
- Ô mãinha, a gente já andou tanto,- falei com voz de manhoso¹ - se eu voltar, perco o ônibus e me atraso, acho que vou arriscar. Se chover vai ser pouco, dá pra voltar.
- Mas é teimoso viu, depois, depois. Digo mais nada.- ela me disse em tom de negação e eu ri.
- Ô dona Rosa, confia mulher, pra quê se estressar? - lhe dei um beijo na testa e ficamos esperando os nossos respectivos ônibus.
A casa de João não era tão longe, só precisava pegar um ônibus e andar um pouco, mas mesmo assim saí duas horas antes considerando que esse horário depois do almoço é o que tem mais trânsito e eu também nem sabia qual era a casa. Minha mãe pegou o ônibus primeiro e logo depois o meu surgiu. Por sorte, eu consegui um lugar pra ir sentado e ainda na janela onde eu encostei a cabeça, e fiquei esperando ver onde deveria descer, pelo google maps eu vi que tinha um mercado mesmo de frente, então assim que o vi pedi parada.
Depois de andar um pouco cheguei à casa amarela de muro baixo, com portão e porta de ferro pintados com tinta óleo branca, tal qual os detalhes da parede que formavam algum tipo de moldura em relevo ao redor da parede da frente da casa. Meu relógio marcava 14:20, 10 minutos antes do que programamos, quando o chamei. Ele demorou um pouco e depois chegou correndo de calça jeans, sem camisa e com uma toalha no ombro, o canto da boca melado de comida, provavelmente tinha acabado de comer. Abriu a tranca da porta do terraço e depois o cadeado do portão.
- E aí, Zé? - ele estendeu a mão
- Oi, Jão! - eu apertei a mão dele, percebendo no mesmo momento que a intenção dele era apenas um toque, o que gerou um momento de confusão seguido pela risada de ambos e, em mim, uma vontade enorme de cavar um buraco e me esconder até ele ir embora.
- Eu tava indo tomar banho agora, entra aí.
- Poxa, já tinha esquecido? - Falei de brincadeira enquanto passava por ele para o terraço e esperava que fechasse o que tinha aberto.
- Nada, cheguei agorinha do trabalho. - Ele apontou para a moto que estava numa parte coberta à direita, entre o muro e a casa com um capacete e uma bolsa térmica de entregar comida em cima. - Atrasei um pouco porque tive uma entrega bem longe.
- Relaxa, tô brincando. - Segui ele pela casa para saber onde ficaria. Depois do terraço pequeno que tinha quatro cadeiras de alumínio e uma mesinha de centro baixa com tampo de vidro, adentramos um cômodo que foi dividido em duas salas. A sala de estar tinha dois sofás, um de três lugares na parede da direita, ao lado da porta do primeiro quarto e de frente à televisão, o segundo, de dois lugares, formando um L com ele e que servia meio que de divisão para a sala de jantar improvisada que se tratava apenas de uma mesa de vidro com quatro lugares. Entre o segundo sofá e a mesa ainda havia mais uma porta que eu supunha ser o segundo quarto.
- Eu vou só tomar banho, tu espera um pouquinho? Pode sentar aí no sofá e assistir alguma coisa, ou sei lá, fica a vontade. - ele foi até a mesa e pegou um papel pequeno - Essa é a senha do wifi.
Eu o agradeci, e sentei no sofá para esperá-lo. Conectei meu celular no wifi e resolvi responder as mensagens que tinha no whatsapp, a primeira conversa que li foi do meu grupo de amigos da faculdade falando sobre a matrícula que já tinha aberto no site da universidade, a segunda era um outro grupo de amigos meus só que do ensino médio, fico pensando o que diriam se eu dissesse onde estou neste exato momento. Provavelmente que eu sou muito besta de estar ajudando João novamente depois de tantos anos, mesmo que no cenário atual estamos falando de uma troca mútua. Mas pensar nisso me deixa emputecido com a forma que tratamos as dificuldades das outras pessoas nas escolas, qualquer um que não se dê bem é levado como uma pessoa inferior, quando na verdade a falha é do nosso sistema de ensino.
Olhando para o caso de João, ele não era do tipo que atrapalhava sempre a aula, talvez uma vez ou outra rindo com os amigos, mas isso até eu. Ele só era do tipo que realmente não fazia nada, ele tinha dificuldade em entender o conteúdo e muita vergonha de tirar dúvidas na frente da turma. Quando comecei a tirar dúvidas dele me assustei por serem perguntas muito pertinentes até, o que quebrou a imagem que eu tinha de que todo mundo que tirava nota baixa simplesmente não se esforçava.
Meus pensamentos foram interrompidos pela minha curiosidade que foi aguçada quando passei meus olhos pela bancada abaixo da televisão pendurada na parede, ao lado do decodificador da antena havia uma foto de família. Nela, João era pequeno nos braços de uma mulher esguia com lenço na cabeça, ao lado de um homem mais baixo com rosto sério. Levantei e me aproximei para olhar bem, eles pareciam felizes de longe, mas seus olhares eram tristes como uma despedida. Eu já tinha ouvido dizer que a mãe de João tinha falecido quando ele era pequeno, nem consigo imaginar como houvera sido para uma criança passar por isso.
João voltou depois de algum tempo me encontrando no sofá vendo alguns reels do instagram.
- Oxe, eu achei que tu ia tá assistindo aqueles documentários de animal na floresta. Pode ligar pow, esse negócio aí é daqueles gatonet.
- Que tipo de ideia tu tem de mim em? - Perguntei com falso tom de ofendido quando na verdade o palpite dele não foi tão longe da verdade, eu com certeza estaria assistindo algum documentário se não fosse esse novo vício em vídeos curtos de gente dançando. - Se fosse pra ver documentários eu veria sobre constelações e nebulosas.
¹ Manhoso: birrento, mimado, infantil.
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Entropia
DragosteZé é um estudante de licenciatura em física que é convencido a ajudar um antigo amigo do colégio a estudar para o ENEM. Entre cálculos, teorias e descobertas o garoto se vê num grande desafio de conhecer seu aluno para aproximá-lo do conteúdo sem qu...