Sob o luar da eternidade

41 0 0
                                    

"A existência é uma escolha.
Não há caos no mundo, apenas complexidade.
Conhecimento do complexo é sabedoria.
Da sabedoria do mundo vem a sabedoria do eu.
O domínio de si mesmo é o domínio do mundo.
A perda de si mesmo é a fonte de sofrimento.
O sofrimento é uma escolha e podemos recusá-lo.
Está em nosso próprio poder criar o mundo ou destruí-lo."

Sobre as dunas infindáveis dos desertos de Askaari, uma figura solitária caminhava pela areia, seus passos lentos, cuidadosos, sentindo seus pés afundando na areia macia a cada passo, sentindo o vento roçando levemente em sua pele como se a estivesse convidando a seguir em frente, acima de sua cabeça, no céu, um mar de estrelas a iluminava, a belíssima lua que outrora se destacava nesse oceano estelar agora jazia em pequenos fragmentos. Ela fora destruída por Zar'Oc, aquele que trouxera a destruição ao mundo, mas esta, infelizmente, é uma história para outro momento.

Revna, uma guerreira, já não conseguia mais diferenciar se aquilo era sonho ou realidade, todas as sensações, sempre tão vívidas, além dos ventos que parecem lhe sussurrar para seguir em frente. Nunca em sua vida já presenciara algo semelhante. Seus passos que nunca pararam a estavam levando por um caminho praticamente imutável, e o tempo que levou não poderia ser medido nem pela maior das ampulhetas.

Logo, a mulher notara uma silhueta a distância, mas estava tão longe que os detalhes eram impossíveis de lhe serem tirados, porém ela não tardou a se aproximar, sentindo o cheiro perfumado e floral enquanto o fazia e pensara consigo mesma -Esse cheiro parece familiar, mas o quê é? - O momento de dúvida não durou mais do que uma respiração e antes que percebesse estava quase diante da silhueta, que agora se mostrava como um homem alto, de ombros estreitos, com um manto acinzentado sem adornos lhe caindo sob o torso, uma vestimenta simples. O sujeito estava de costas e a tez clara podia ser facilmente notada pela falta de cabelos do mesmo, além de suas orelhas levemente pontudas. Mas algo sobre ele não parecia certo, o vento que movia a guerreira não parecia tocar o homem que permanecia incólume, observando o céu estrelado. E assim a guerreira, se voltando contra todos os seus instintos decidira olhar para a mesma direção que ele, se perdendo por alguns momentos, como se as estrelas possuíssem sua própria maresia e estivessem lhe corroendo a mente com sua beleza.

-Quem é você, criança? - o homem pergunta, arrancando Revna de seu devaneio com sua voz grave e afiada, deixando a mulher desarmada a sua frente e completamente estupefata, como se tivesse se esquecido da existência do homem. Agora com o rosto diante de seus olhos, ela pôde finalmente notar as feições do elfo. O rosto fino e queixo afiado, a mandíbula pressionando o maxilar, retesando seus músculos da face, lhe dando uma expressão imponente, que em conjunto com suas sobrancelhas finas, pouco arqueadas e seus olhos ferinos avermelhados, o faziam parecer feroz. Mas o que mais lhe tornava estonteante eram as 4 pequenas pedras avermelhadas em sua testa, logo acima das sobrancelhas, que pareciam simular outros 2 pares de olhos. Franzindo seus lábios finos levemente, demonstrando um leve descontentamento, ele logo tornou a perguntar mais uma vez -Quem a trouxe para essas terras perdidas, filhote? - disse o perdido, agora colocando ferro em brasa no seu tom. O que arrepiou levemente a mulher.- Eu... eu não sei, não sei como vim parar aqui. - Disse a guerreira, a voz falhando diante do olhar carmim do elfo.

-Não sabes? Tu entraste em meu purgatório e não sabes como? - Perguntou o homem, tentando controlar a raiva em sua voz. - Mas tu é a primeira pessoa que vejo em eras, então conversar um pouco não nos fará mal, desde que você não minta.- Diz ele, colocando grande ênfase na última palavra.- Já escutei mentiras o suficiente para seis vidas.

-Já me chamaram de muitas coisas, inúmeros nomes... Tantos que já não me lembro de nenhum, mas há um título que me relembro bem, costumavam me chamar de "lobo de muitas faces", não me lembro do por quê, sendo assim, você pode se dirigir a mim como lobo, por enquanto.- Sua voz agora transparecendo seu cansaço, parece calma e serena, um grande contraste se comparada há momentos atrás. 

A mulher, que já passara por provações horrendas pouco se abala com tudo isto, e apenas aceita a realidade imutável do sonho que se desdobra a sua frente, logo se adaptando a ela.- Me chamo Revna, dizem que irei me tornar uma das três Morrigans, uma das deusas da guerra, ou o que quer que isso signifique.- Suas palavras saem calmas e  monótonas de sua boca. - Morrigans? Não sei qual é o significado deste título, ou alcunha, eu suponho. Bom, é um prazer conhece-la, Revna, futura Morrigan.- Diz o homem, com um leve aceno, a cumprimentando.

-O que é esse lugar?-  Indaga Revna - Tem alguma cidade por perto?-  ela diz, enquanto observa seus arredores, seu olhar se perdendo entre as dunas e a maré das estrelas.- Este é meu purgatório, minha prisão, uma gaiola bonita e vazia para prender um velho decrépito, estes...- Sua voz falha momentaneamente, como se tentasse se lembrar do nome deste lugar. -Estes são os desertos de Askaari, uma terra de eternidade.- Sua voz se tornando fagulhas no final, quase inexistente.- Por quê não me conta sua história, pequena Morrigan?- Pergunta o homem, sua voz quase em súplica. - Fazem eras desde a última vez que escutei palavras de outra boca.- E assim que termina seu pedido, o lobo se senta diante dela, como um pequeno garoto que anseia pelas antigas histórias do avô.

*******

O elfo que estava completamente imerso em suas aventuras e desventuras teve um leve sobressalto ao perceber que a pergunta era dirigida a ele. - Peço desculpas, sua história... repleta de dor, alegrias e traições.- Ele coloca gentilmente a mão direita no ombro da guerreira. - Eu me identifico e entendo cada uma dessas sensações, esses momentos estão gravados em minha própria carne...- O homem para por alguns instantes, voltando seu olhar para o céu acima de si. - Eu, a uma eternidade atrás, já vivi entre os primeiros homens.- O mesmo se levanta com facilidade ao terminar sua sentença e com um leve gesto de suas mãos, começa a moldar a planície desértica a sua frente, fazendo-a tomar a forma de árvores, pequenas plantas e até mesmo casas com estruturas e formatos exóticos para o olhar da guerreira dos mares do norte. Tudo isto feito em uma mera respiração e logo, ela viu um pequeno sorriso surgindo na face do elfo e então, ele continuou. - Essa história que irei lhe contar diz respeito a primeira de minhas vidas, diz respeito a vida do Askaari de um povo agora esquecido. Se bem me relembro, a vida sempre fora difícil naqueles tempos, afinal há pouco havíamos nos livrado da influência dos Garou e a região em que vivíamos tinha o solo duro que mal gerava vida, mas mesmo diante de todas essas adversidades encontramos um jeito de sobreviver.-  Ele seguia realizando leves gestos com as mãos levando vida a história e ilustrando cada uma de suas palavras.

- Não sei e nunca soube com certeza do por quê, mas sempre fui diferente daqueles que viviam a minha volta. A natureza, os animais... Eu podia senti-los como o bater de meu próprio peito, sentia a força dos rios, a fúria surda dos mares. Sentia o amor dos filhos de Gaia por ela e assim soube que as antigas histórias de carnificina, dos lobos assassinos, dos pastores de primevos...-

Com os pequenos grãos de areia ele cria a silhueta de uma criatura animalesca, tanto humanoide quanto ferina, uma junção que a transforma no mais poderoso dos predadores, um Garou. A fera observa o céu acima, encarando o local em que Luna deveria estar e em um momento de devoção, uiva do fundo de seus pulmões, louvando-a, e como se nunca tivesse surgido, se desfaz sendo levada pelo vento. - Soube que eram todas inverdades, afinal, quem estava cravando suas garras e rasgando as entranhas da terra éramos nós, os primeiros homens.- Ele parou por um instante, como se estivesse contemplando sua própria história, se surpreendendo com as palavras que saiam de sua boca.

- E não tardou para que o maior de meus poderes se revelasse, vi aqueles que amei crescendo e eventualmente sendo levados pela única coisa que não podiam vencer, o tempo. Era como se ele não pudesse me tocar, o mundo a minha volta continuava a crescer, mudar. Eu permaneci o mesmo por décadas sem fim, tentando entender o motivo por trás disso.- O Askaari para por um longo momento, como se as palavras lhe tivessem custado muito caro e respira fundo, os ombros levemente caídos, evidenciando que o peso destas vivencias transcendem todas as proporções imagináveis. - Depois de tomar nota desta maldição, parei de contar os anos que se passaram. Vivi vagando, derrubando tiranos de seus tronos e levando justiça com minhas próprias mãos para aqueles que mereciam, conheci figuras incríveis. Anjos, demônios... Conheci a todos, aprendi sobre forças maiores e diferentes planos de existência. Até que me vi exausto, me senti sujo com todo aquele sangue que havia derramado, meus esforços pareciam inúteis.



Minhas facesOnde histórias criam vida. Descubra agora