Único

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Desde a minha chegada neste purgatório adolescente, vulgo Nevermore, meu coração tem doído como se eu estivesse sendo apunhalada por uma adaga durante a terapia de eletrochoque, porém não do jeito bom. Minha escrita tem se resumido a romances caretas e extrovertidos, quase coloridos, assim como minhas melodias, antes melancólicas e cheias de morte, agora afogadas em um poço de alegria — isso sim é tortura pesada, até para mim.

Estou sendo constantemente asfixiada pelos pensamentos perturbadores em torno da existência de Enid Sinclair. Meu nível de socialização tem aumentado por causa dessa convivência estranhamente subversiva; não estou acostumada a socializar, apenas matar.

Todas as vezes que nossos olhos se encontram durante o dia meu estômago revira como se eu tivesse tomado mais uma dose do meu veneno favorito. O toque assustadoramente reconfortante, porém macio, das suas mãos sobre as minhas me causam arrepios, que passam por cada vértebra da minha coluna. E sempre que vejo um arco-íris repulsivo e ouço uma música pop sofrível, eu me lembro da Enid, pois a marca que ela deixou em mim, de alguma forma, tornou-se eterna depois do primeiro semestre.

Importar-me com o que os outros pensam sobre mim continua imutável, mas o que a ela pensa sobre minha existência passou a ser o motivo da minha insônia costumeira. Até as minhas dálias negras parecem ter ganhado mais vida depois da minha repentina e simultânea rotina entre pensar em Enid, ler, escrever, praticar minhas partituras e as minhas torturas semanais. Contudo, sinto que minha essência tem se esvaído entre nossas trocas de palavras, principalmente depois dos nossos encontros semanais durantes as festas banais — não vou pela festividade, vou para poder apreciar sua companhia, que é unicamente peculiar.

Agora, neste pequeno instante, sinto-me perturbada pelo turbilhão de emoções que estão adentrando meu corpo a cada toque mais profundo e, apesar de achar que emoções são uma fraqueza, adquiri a necessidade por continuar experimentando essas sensações tão singulares desse relacionamento tão... atípico.

Estou olhando Enid, que não para de falar, e não consigo deixar de prezar por cada palavra que sai de sua boca. O assunto é totalmente desconhecido para mim, mas continuo a encarando durante todo o processo. Seu cabelo tem mais duas mechas coloridas novas e o delineado azul claro enfeita os dois olhos dela junto ao glitter branco sobre seus zigomáticos.

Ela muda de assunto e fala impacientemente sobre a festa de hoje a noite enquanto termina de pintar suas unhas, mas dessa vez não com esmalte Lua prateada, e sim com o meu preto costumeiro. Apesar da sua agitação, perco-me entre os pequenos detalhes que a fazem ser estranhamente agradável aos meus olhos.

As cores berrantes da sua parte do quarto adentram meus olhos e a qualquer momento acho que minha alergia irá começar a atacar. Enid ri do meu comentário sobre como ela parece um arco-íris e tenta insistir para que eu use, pelo menos, um glitter preto e branco em meu rosto, mas recuso e digo que prefiro ser enforcada na árvore do pátio.

Ela ri novamente, mostrando todos os seus dentes ao passo que eu faço o completo oposto, esperando que desista de sair e me levar junto. Passo as mãos sobre a gola do meu vestido e ouço que ela está pronta para a festa; é hora de ser torturada durante três horas e meia entre adolescentes desesperados por sexo, bêbados e sem um pingo de autoestima, mas aprecio o sadismo.

Ela segura a minha mão e arruma um único fio solto do meu penteado, surpreendendo-me pela aproximação tão repetida. Pisco rapidamente e dou um passo para trás, ouvindo ela dizer que estou realmente linda.

Retribui o elogio de uma maneira lenta — quase gaguejando —, porque, apesar de achá-la agradável aos olhos e de gostar de sua companhia e de seus toques, é difícil dizer algo tão altruísta, sem falar em como ela está usando um vestido que, notoriamente, parece ter sido vomitado por um unicórnio.

Enid agradece o elogio, mesmo que difícil para mim, e diz que estou aumentando meus pontos no quesito socialização. Em seguida, com seu celular, ela pede uma foto e não espera que eu diga sim, apenas aperta o botão e em seguida abre seu Instagram.

Novamente, eu pisco várias vezes e respiro fundo, pois estou me sentindo sufocada e desagradavelmente enjoada por causa do perfume extremamente doce que ela está usando. Ainda não sei como estou sobrevivendo a tudo isso, mas minha mãe diz que esse é irônico amor; turbulento e doloroso como uma manhã ensolarada e revigorante como um homicídio em uma sexta-feira 13.

— Pronta para se divertir? — indagou enquanto guardava seu celular em uma bolsinha de pelúcia rosa.

— Prefiro ter meus olhos arrancados e meu tímpanos perfurados — respondo, encarando-a e repousando minhas mãos em frente ao meu corpo. — Mas sim, estou pronta.

—Vamos estar juntas, já é diversão o suficiente! — Ela entrelaça seus dedos aos meus e fica de frente para mim. — Você sempre diz que não gosta de ir, mas eu te peguei sorrindo mais de duas vezes na festa da semana passada.

— O Ajax teve uma fratura exposta na última festa — explico.

— Não tente fugir, Wednesday! Você sabe que gosta da companhia do pessoal e, claro, da minha.

— É bom passar um tempo com todos eles, só prefiro fazer isso enquanto exumo corpos — digo e franzo o cenho.

— Confia em mim, o Xavier me falou que as músicas da balada gótica da semana passada vão estar na lista de músicas.

— Vamos antes que eu pule da sacada — pedi.

Enid dá pequenos pulinhos e agradece dezenas de vezes por eu ter aceitado ir com ela mais uma semana seguida e, em seguida, toma meus lábios sem um aviso prévio, deixando-me petrificada por alguns segundos antes de retribuí-la — ainda não me acostumei com a sua temperatura. Ela segura meu rosto e pressiona sua boca na minha uma última vez, separando-nos e ficando a poucos centímetros do meu rosto.

— Obrigada por aceitar — ela sussurra, sorrindo. — Estou te sufocando de novo? — Por um momento ela arregala os olhos ao perceber meu semblante.

— Constantemente — retruco, mas dessa vez com um leve sorriso —, e para sua sorte, eu gostaria de retribuí-la novamente enquanto fingimos que estamos dormindo — exponho a nossa tentativa falha de tentar algo mais que pequenos beijos, que foi atrapalhada por um convidado não esperado, e ela sorri envergonhada.

Saímos do quarto enquanto Enid continua vermelha, mas a animação ainda está estampada em seu rosto. Assim como ela, também estou animada, porque sei que vamos voltar mais cedo da festa só para concretizar o que antes foi dito e, como uma boa estrategista, é claro que falei aquilo de propósito. Voltar mais cedo de uma festa adolescente e ficar sozinha com ela é tudo o que eu quero. 

Irônico mesmo é o tal amorOnde histórias criam vida. Descubra agora