"Às vezes, paro e fico pensando como me vejo nesse mundo tão frio e distante em que vivemos. Mesmo estando rodeado por diversas pessoas, nenhuma delas nos completa."
Outra vez, acordo com a mesma música repetida tocando no rádio. Normalmente, é o primeiro som que escuto ao recobrar os sentidos. Nunca lembro se tive sonhos ou talvez pesadelos. Quase sempre, a primeira visão que tenho ao abrir os olhos é meu pôster colado no teto do quarto, retratando a figura de uma moça de um anime que assistia com meu amigo de infância. Ela está com as mãos na cabeça, seu rosto aparenta estar questionando sua própria existência. Afinal, quem nunca fez isso? Muitas vezes repenso como minha vida é e qual rumo estou levando. Atrás da moça, cujo nome é Rei Ayanami, há um robô gigante, a Unidade Zero. Os acabamentos do pôster são bonitos; foi-me dado por David antes de se mudar da cidade onde morávamos. Queria me dar algo para recordar o que um dia foi a nossa amizade. Atualmente, não gosto de criar vínculos e ligações por longos períodos. Me sinto um pouco deslocado, de certa forma perdido em um ambiente ao qual não pertenço.
Ah... como sou descuidado. Meu nome é Miguel e este será o começo do meu diário. Resolvi escrevê-lo para ter mais controle no meu dia a dia; vai servir como lembrete de meus erros e acertos. Quando me sentir perdido dentro de minhas memórias, servirá como backup para recordar.
Esta manhã, como todas as outras, está começando ociosa. Pouco a pouco, os primeiros raios de sol entram em meu quarto. Embora ele seja pequeno, costumo deixá-lo arrumado. Sinto o cheiro de café vindo da cozinha; o aroma é sempre bom e me dá vontade de nem levantar. Porém, minha lista de afazeres é grande hoje. O início do novo ano letivo está próximo.
Ontem mesmo tive um sonho sobre a nova escola. Nele, eu tinha um compromisso no colégio. Havia um clube de teatro e, para entrar na escola, tive que abrir uma sala de porta vermelha com maçaneta de globo branco. A sala era bem estreita e pequena. Enxergava vários prédios nesse globo. Girei a maçaneta e entrei. No sonho, por algum motivo, tentava sair da sala até que consegui milagrosamente. Depois, ia direto ao compromisso no clube de teatro, que, na verdade, não sabia o que era, apenas tinha que estar lá.
Mas, por alguma razão, eu sempre voltava para a mesma sala com a porta vermelha e o globo branco, e tentava mais uma vez sair por ela da mesma forma, repetindo o ciclo mais cinco vezes, com a dificuldade aumentando a cada retorno. Até que reparei que na sala havia outras pessoas, e com o tempo o número dessas pessoas ia diminuindo. Da última vez, esperei para ver o que as outras pessoas faziam para deixar o local. Vi que simplesmente abriam a porta girando a maçaneta. E percebi, no sonho, que todas às vezes que saí, na verdade, era alguém atrás de mim abrindo a porta.
Olho para frente com a visão ainda meio turva e percebo que deixei o PC ligado ontem. Estava jogando um jogo novo e, por ser bastante agitado, minha concentração reduziu um pouco. Minha vida social atualmente se resume a encontrar NPCs em jogos, consequência de um passado que tento esquecer com todas as forças. Algumas pessoas dizem que sou desligado do mundo por culpa dos meus pais, mas isso é um grande engano. Eles me criaram dizendo que "Uma certa dose de sofrimento nos faz amadurecer, ser mais independentes e livres."
Meu pai é um grande ator de teatro e minha mãe uma excelente professora de espanhol. Por serem tão requisitados em suas áreas, raramente os vejo, principalmente meu pai, que está sempre viajando com o grupo teatral. Com ele, aprendi muito sobre arte, música e filosofia. Minha mãe sempre tinha algo para me contar de quando ela era criança e vivia no México.
Por motivos que não quero contar agora, troquei de cidade. Estou morando em Brilho Malva com meus tios e ficarei até completar o ensino médio. Às vezes, sinto que não tenho lugar no mundo e que as pessoas que tento juntar à minha volta podem se tornar meros inimigos. Desde cedo, notei que muitas amizades são compradas, tornando-se superficiais e fracas. Não sinto nem vontade de falar ou gritar. Percebi que é melhor viver sozinho do que mal acompanhado. Não vou mudar esse meu jeito de pensar só para ser reconhecido pelos outros. No fundo, sei que todos são egoístas. Quanto mais penso, menos quero sair da cama.

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O Som do vento (volume 1)
RomanceCrescer nem sempre é algo comum ou fácil. Ás vezes sentimos alegria e tristeza ou até mesmo raiva, vivemos a base de emoções e também momentos, de forma inesperada algumas histórias de vida se entrelaçam nesse redemoinho de sensações diante ao caos...