Somos eu, quer dizer, me chamo Mathias, e meus broders, quer dizer, Ricardo, Éder e Lorenzo. Há também Eloisa, ela sendo namorada de Ricardo, e todos sabem que a namorada de um broder deve ser considerada broder também. E estamos no carro dele mesmo, do Ricardo. Mas Ricardo mesmo não está no carro, está ali: entrando na loja de conveniência. Ele nos deixou aqui, chapados e conversando. Quer dizer, eles estão conversando. Eu só ouço:
"Blá, bláblá, bláblábláblá"
"Na, nanãnãnã, nãnãnã"
"HAHAHAHAHAHAHAHA"
"HOHOHOHOHO", sinceramente, quem ri assim?
Enfim, vocês entenderam. Eu não. Eu não tô entendendo nada. Eu só sei que o Ricardo saiu do carro e tá ali, parado na porta, e tem um cara conversando com ele. Um cara estranho, parece ter cheirado. É alto, tem uns cabelinhos espetados e loiros, é esquisitão. Por algum motivo, ele me chama a atenção e é literalmente a única coisa focada na minha visão, o resto todo é embaçado e parece um tipo de filtro estranho da realidade. Eu deveria anotar isso e desenvolver um filtro. Faria sucesso, essas coisas fazem sucesso. Mas o que eu faço não costuma fazer sucesso, então provavelmente a realidade entraria em sobreposição quântica e... por Deus, onde eu tô indo parar?
Não. Como eu ia dizendo, esse estranho chama a atenção. Consigo ouvir o que ele fala, também, além de todo o burburinho.
"Eu não sou eu", ele solta. "Cara, eu não sou eu!"
"Como assim você não é você, truta?", Ricardo gosta de chamar as pessoas assim. Fazer o que?
"É! Eu fui tentar pegar meu carro lá na Ford... E eles disseram que eu não sou eu!", a voz dele é grave e estranha. Parece até meio mongol, meio lentão. Mas ainda assim parece acelerado, a pupila tá dilatada, coisa do pó. Olho pelo retrovisor, tento ver se minha pupila tá dilatada também, mesmo que eu não tenha usado pó. Nem sei, tá muito escuro pra ver. Foca, Mathias.
"Mas se você não é você, então eu não sou eu!", solta Ricardo. Eu até esqueci se ele tá indo ou voltando, ainda tá encostado na porta, mantendo ela aberta. Acho que eu tinha dito que ele tava entrando, mas na real ele tá saindo mesmo. Desculpa.
"É!", solta o estranho. "Mas eu não sou eu!"
"Como não?", Ricardo parece ter mudado a abordagem. Conheço ele. Ele tá brincando com a brisa do maluco.
"E se eu não sou eu, então ninguém é ninguém!", isso estranhamente faz sentido. "Você não é você!"
"Mas isso foi o que eu disse."
"Tudo bem. Eu vou lá mostrar que eu posso ser eu de novo! Eu vou lá!"
"Vai lá, truta!"
Alguma coisa tá me dizendo que isso aí vai ficar na minha cabeça. Alguma coisa. Uma sensação esquisita, bem lá no fundo da minha mente: onde posso alcançar pela embriaguez, mas que depois se tornará tão inacessível e distante que parecerá apenas uma sensação.
Enfim, Ricardo volta pro carro, acho que ele tinha ido sacar dinheiro. Fico pensando nesse acontecimento bizarro e nesse cara esquisito pelo rolê todo. Às vezes até tentam chamar a minha atenção, me incluir no papo, mas não rola. Eu sei quando tô em outra, e eu preciso entender. Digo, eu não sou eu, sabe? É uma frase impactante. Ele não é ele porque ele perdeu a identidade? Porque não o reconhecem? Porque saiu de si? Por que ele não é ele? O que gerou essa crise de identidade esquisita, além da droga? Deve ter rolado algo, claro, não tem como não ter rolado. Alguém o contestou. Mas isso é porque realmente não o reconheceram ou ele achou que era outra pessoa?
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Contos sob Neons: Eu não sou eu
Terror[Conto] Mathias está com seus amigos em um rolê duvidoso: todos embriagados no carro. A coisa muda de figura quando sua atenção foca em um cara estranho na porta da loja de conveniência, que insiste em dizer: eu não sou eu. Desde então, Mathias car...