Era um dia rosado de primavera. Tocava-se incansavelmente em cantos - desde as sete, agora catorze - quando o sol decidiu regir às suas próprias sinfonias. Girassóis, tulipas, rosas e margaridas: todas cantarolavam tortuosamente a promessa de belas manhãs na campina do sul da cidade brasileira.
Os cantos e centros do burgo acompanhavam a melodia. Ainda aflitos, porém jamais inertes.
Em qualquer lugar, um homem ranzinza e robusto caminhava, como se fosse necessário para qualquer história. Sua presença perseverava no ar um cheiro cinza de retirar o bom humor forçado nos risos das pessoas.
Seus passos conduziam a calçada a querer rachar a cada pisadela. Todos, que passavam pelo descontente homem, ficavam abismados com tamanha repugnância. Dos mais velhos, que contestavam baixinhos, até os mais novos, que nunca relutavam em apontar e berrar para seus pais o zangado.
Francamente, acredito eu que o mais cético dos homens se assustaria de como um só indivíduo - mesmo tão jovem - proporcionava um ar tão seco que poderia fazer murcharem plantas ao seu redor. Lorenzo Hoff, com os braços rígidos numa tentativa triunfante de desencarar rostos e desatrair corpos, atravessou as portas do saguão do Hotel Laghetto.
Subiu as escadas. Nem se tentava o elevador, já que como quase tudo no Brasil, ele também não funcionava. No final, os degraus serviram mais para cansar ele dele mesmo, em tentar manter o mal-humor, do que somente a função principal delas - subir. Quando se chegou - por fim - no oitavo andar - quem aguenta? - podia se sentir aquele cheiro rosado adocicado da manhã reaparecer. Pouco se cheirava o mal visto cinza. E quem há de pensar que apenas olhar àquela pratinada placa enferrujada, numerada por 111, resolveria toda aquela ranzinzice.
Uma pena que não muito durou. Com suas grandes mãos, Hoff vasculhava em cada pequeno vão de seus bolsos, das calças ao casaco. Nada. E tão rápido quanto o doce chegou, ele partiu. Ele perdera suas chaves.
Agora, preso no lado de fora de seu apartamento, só havia uma solução inteligente e eficiente: ligar para o síndico, abordar a situação, pegar a chave reserva e, por ventura, substituir as fechaduras.
Mas, talvez Hoff tivesse outros planos:
- PORRA! MERDA! DESGRAÇA! Você é o burro ou faz curso, caralho? - ele continua, agora apontanto o seu indicador para o próprio rosto dramaticamente - você teve a droga de um dia de merda e ainda esqueceu as chaves do próprio apartamento. AHHH!
O tom de sua voz diminuia gradativamente ao tempo que percebia o quão alto gritava para que, assim, todos os seus vizinhos pudessem o escutar. Afinal, era melhor ainda ter onde morar do que ficar sem chaves e sem casa.
- Você só tinha uma função quando voltasse do trabalho: não esquecer as CHAVES - indicava pressionando seu indicador direito no centro da palma esquerda - chegar em casa seguro para deitar no seu sofá e fingir que essas pessoas de MERDA deste dia de MERDA nunca existiram! - ele exclamava novamente, esquecendo, às vezes, o tom das suas palavras.
Não demorou para se ouvir barulhos de coragem para fazer a 101 abrir.
Um vulto surgiu primeiro. Ao tempo que o espaço da porta a parede aumentava, o vulto virara uma pessoa. De uma pessoa, um homem. E no tempo que o vulto que virara pessoa que virara um homem acontecia, notava-se sua pele caramelizada. Seus cabelos ondulados como macarrão parafuso. E seus olhos castanhos café. Hoff adiantou e perguntou:
- Eu poderia utilizar seu interfone?
- Por quê? - os olhos castanhos focavam cautelosos.
- Acho que tá óbvio pelos gritos, né? Todos do corredor devem ter ouvido. Ou você é surdo ou o quê?O silêncio tomou conta do espaço.
- Ei! Você me ouviu?
- Ah. É você... ainda. Claro, desculpa aí, eu sou surdo de um ouvido e um pouco do outra.
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Estações - CONTOS
Short StoryUm compilado sistemático de contos que perpassam, em tons leves, estórias de amor, paixão, amizades, encontros e desencontros. Cada conto atravessando - respectivamente - as estações da primavera, verão, outono e inverno. Os contos não, necessariame...