Eric Manuel, narrando…
Quando são perguntados quem são a maioria das pessoas usa grandes adjectivos atrás de seus nomes, mas eu não sou assim. Todos no meu bairro chamam-me de Eric, e é fácil descobrir quem eu sou e onde vivo, basta apenas perguntar a uma das vizinhas quem elas acham ser a pior influência para seus filhos adolescentes.
E a resposta é simples. Eu, é claro.
Com os fones de ouvido em minha orelha, e ouvindo beats aleatórios de rap, amarro a última sacola de lixo que há para deitar. Balanço a cabeça enquanto caminho sem pressa rumo a lixeira.
Até que alguém toca em meus ombros, obrigando-me a parar no meu do caminho.
–– É como? – Pedro fala pousamos seu cotovelo em meu ombro. – A ressaca já passou?
–– Eu não bebo. – acrescento – Podemos continuar a falar sobre isso depois? Tenho que deitar essa cena.
–– Relaxa, Para que servem os irmãos? – ele diz carregando um dos sacos – Hoje acordaste disposto a fazer trabalhos. Estou surpreso.
Pedro Quinanga, ou simplesmente Quinanga é dos poucos gajos com quem converso. Ele também é o responsável pelos campeonatos de basquetebol no bairro. É bué fix andar com ele, especialmente porque ele tem sempre dinheiro para gastar com qualquer coisa.
Depois do lixo, usamos o mesmo caminho para voltar. Quinanga está tão animado e por isso não para de lembrar como a noite de ontem foi inesquecível, da vitória da equipa do bairro, do quanto ele bebeu e as mulheres com quem ele ficou.
–– É como, tá tudo calmo por aqui? – digo cumprimentando alguns rapazes.
–– Na paz. – eles respondem. Todos eles estão sentados num só lugar, vendo algo no telefone.
Faço de conta que estou nem aí para o que eles estão conversando, tiro uma bola e começo a driblar. Sem sombra de dúvida, esta quadra é a única coisa boa que há nesse bairro. Quinanga pensou fora do caixa ao construir.
A gente vive no Zango. E literalmente é como se estivéssemos a viver no fim do universo, onde o governo só lembra de nós nas eleições. Aqui as casas são de chapas e ruas arenosas, por isso é natural as crianças serem criminosas.
–– Já sabem da novidade? – um dos rapazes pergunta, e de alguma forma ele próprio se responde – Estão a recrutar novos talentos para a equipa de sub-19 de basquetebol do Petro.
–– Não me imagino a jogar usando a camisa do segunda maior equipa do país. – diz o outro – No primeiro salário vou sair desse inferno.
–– Parem de sonhar tão alto! Por acaso vocês têm algum tio ministro? – Quinanga esbraveja – Esse tipo de publicidade é bué enganosa. Óbvio que já tem pessoas que vão ocupar esses lugar.
–– Não esquece que nada é impossível. – rebato. Lanço a bola e ela entra no cesto.
–– Até você, Eric? – Quinanga franz o cenho – Olhem para todos vocês, não passam de jovens de vinte e poucos anos que não são nada da vida. As pessoas da zona sul não vão aceitar que gajos da zona norte vá pra lá.
O silêncio toma conta da quadra por alguns segundos, e ninguém se atreve a rebater novamente. Então, o Quinanga acrescenta aos berros:
–– Quando vocês pensam em coisas desse gênero é como se estivessem a cuspir nos pratos que eu ja vos dei de comer. – ele olha para nós – e se não fosse por mim… – ele sorri irónico.
–– Até depois no jogo. – falo para todos eles. E depois caminho até a saída.
–– E aonde vais? – Quinanga pergunta, mas prefiro apenas ignorar ele.
Farto de ouvir a mesma história, dos que podem nesse mundo e daqueles que não podem, saio sem dizer adeus. Volto a caminhar e não demoro a chegar em casa. A música em meus fones de ouvido está alta, e uso isso como desculpa para não cumprimentar o meu padrasto.
Puxo um banquinho e sento ao lado da minha irmã menor.
–– Por que é que o matabicho ainda não está feito? – olhou para a Severina.
–– Talvez porque nessa casa sou a única que faz tudo quando a mamãe não está. – ela responde.
–– Eu sou homem, e homens não lavam pratos. – retruco.
–– Sério? – ela pergunta incrédula – Então compra o pão.
–– Está bem.
Tiro o dinheiro que está por cima da mesa e saio para ir comprar o pão. Aqui, dentro do bairro, tudo é distante. O escola é longe de casa, o hospital é longe de casa, até a igreja é distante de casa.
Depois de ter comprado, volto em casa com os passos acelerados. Primeiro porque estou com fome, e segundo porque o sol de Luanda é escaldante. Fico surpreso vendo a Severina fora de casa encostada a uma árvore, mas quando me aproximo mais e reparo nos seus olhos banhados em lágrimas, a resposta vem a tona.
É o oidiota do Mechaqui.
Os berros vem de dentro de casa. E como sempre é o meu padrasto quem berra mais alto e a minha mãe é a que grita clamando. Em fracção de segundos, ouço também o barulho de vários pratos e outras coisas mais serem jogadas ao chão.
–– Não, não vai. – minha irmã segura forte no braço e acrescenta sunsurrando – Já liguei a pedir ajuda.
Impesso os meus pés de irem para frente, respiro fundo, e mesmo ouvindo os choros da minha mãe cada vez mais alto, decido ficar parado ao lado da minha irmã, e apenas esperar.
Talvez se ela não tivesse apenas dezassete anos saberia que a polícia aqui não ajuda ninguém, e que ligar para eles é apenas uma formalidade.
Quando o meu padrasto decide ir embora, sei lá para onde, Severina é a primeira a correr para saber como a minha mãe está. Meu padrasto passa por mim com cheiro a álcool, mas eu apenas ignoro.
–– Estou bem. – minha mãe sorri disfarçando.
Coloco metades de gelo numa embalagem. Lentamente passo gelo em seu rosto inflamado.
–– Ouvi por aí que estão a receber novos jogadores de basquetebol. – minha mãe recebe o gelo e acrescenta - Quem sabe é a tua chance.
Não fazia ideia que essa notícia tinha chegado até a minha mãe.
–– Enquanto vendia vários jovens iam até aquele prédio. Acho que a maioria está só tentando a sorte. – minha mãe insiste.
E mais uma vez a ignoro.
–– Os diretores devem estar desesperado, aquela equipa não ganha um campeonato a três anos e talvez pensam e refazer o equipa. – Severina também comenta.
–– Caramba, já chega desse assunto! – esbravejo – Olhem para a nossa vida. A senhora tem um marido que vive batendo em você. A Severina tem propinas e atraso desde o início do ano, e como se não batesse, nós vivemos numa casa feita de chapa.
–– E? – minha mãe olha sério para mim.
Respiro fundo e respondo com toda a serenidade do mundo.
–– Não se cansam, podres não merecem sonhar alto.
–– Eu não tenho vergonha da casa onde durmo nem da vida que levo. – Severina retruca.
Minha mãe levanta. Ela larga a embalagem de gelo. Volta a amarrar o lenço e, antes de sair ela diz:
–– Eu carreguei dois ffilhos no meu ventre, nunca me cansei nem nunca desisti de vocês. – mamãe centra seus olhos em mim – Então não vai ser agora que vou começar a lamentar da vida.
Não respondo nada.
Como as outras tardes, Severina segura numa outra banheira, mete algumas mangas e junta da mamã, elas saiem.
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ME ODEIA, OU ME QUER?
RomanceA equipa de basquetebol sub-19 do segundo maior e renomado club desportivo de Angola está em crise. Não ganha um campeonato a três anos, e só tem somado derrotas. Márcia Catenda é a filha do treinador do Petro de Luanda, o segundo club mais premiad...