O barulho dos metais se chocando ecoavam no silêncio daquela sala, as roupas brancas eram cobertas por aventais e as mãos, embora limpas, eram providas de luvas. Era sempre assim, a criança anestesiada, os médicos trabalhando, os estudantes auxiliando.
Mas quando você precisa se por a prova... as coisas são diferentes, o sangue nas suas mãos, a responsabilidade em seus ombros, a vida de uma criança dependendo de você... Vocês não sabem como é.
Lembro facilmente de como era na época em que comecei meus estudos em medicina pediátrica, hoje já não me reconheço mais.
Todos os pediatras são instruídos a se dirigir de forma divertida e animada a uma criança, não podíamos fazer elas temerem ou ficarem receosas, pelo contrário, tínhamos que fazer elas ficarem confortáveis.
Contudo... Conforme o tempo vai passando, conforme você vai se profissionalizando, você começa a pegar cirurgias de verdade, cirurgias sem auxílio de um médico responsável, e é nessa hora que você é posto a prova.
Talvez as coisas seriam diferentes se eu estivesse escolhido a medicina cirúrgica para adultos, talvez eu não seria o homem que sou hoje se tivesse optado por outra especialidade, mas não tem como mudar o passado, muito menos como mudar a mente de um adolescente que só pensava em pegar o mais fácil e prático.
Confesso que fora isso que me fez optar por essa área da medicina, eu estava sendo obrigado pelo meu pai, pensei que pediatria seria mais fácil, menos trabalho, menos tempo socializando, mas eu estava muito enganado.
Cada criança que perdia sua vida levava um pedaço de mim, cada criança que não voltava da cirurgia levava algo, algo que por muito tempo eu não sabia o que era, mas hoje, analisando tudo, eu entendo.
O sangue de uma criança nas mãos é uma responsabilidade muito maior do que o sangue de um adulto ao meu ver, o sangue de uma criança nas mãos é um peso muito grande pra se carregar sozinho, ninguém sobrevive assim por muito tempo, como o eu do passado nunca pensou nisso?
Como eu me tornei essa pessoa tão fria que sou hoje?
Por quê eu não me importo de manipular os outros para sobreviver?
Por quê eu não me importo com nada?
Essas perguntas tem rondado minha mente desde ontem, o jogo contra o Rei de Ouros me fez abrir os olhos para o meu interior, para a essência que eu deixei morrer conforme aquelas crianças padeciam em minha frente.
Um médico em um hospital é como uma engrenagem em uma grande rede de mecanismos para fazer um relógio funcionar, mas quando a engrenagem não tem mais uma função, o relógio simplesmente para de funcionar, e de que serve um relógio parado?
Eu era uma engrenagem dentro deste imenso relógio, e cada criança perdida, era um segundo roubado do minuto.
Um médico que não podia exercer sua função, quanto sangue nas mãos eu tive que carregar? Por ignorância ou por roubo? Quanto pano eu teria que passar para o sistema? Quantas vezes eu teria que abaixar a cabeça e aceitar? O sangue daquelas crianças não iriam ficar nas mãos deles afinal, ficaram nas minhas, o peso de cada morte ficou no meu ombro, a responsabilidade de salvar cada uma ficou em minhas mãos, e, conforme o tempo ia passando e as coisas se repetindo, eu perdia minha essência, eu não concordava com nada daquilo, então por quê diabos eu aceitava? Quantas vidas eu tirei por puro egoísmo de outra pessoa? Céus, como alguém podia ser tão egoísta?
Talvez fosse por isso que eu tinha tanta raiva do Niragi, uma pessoa que só pensa no próprio benefício, a ponto de matar ou sacrificar outras por puro prazer, interesse próprio e sobrevivência.... Talvez fosse disso que ele estivesse falando para mim e para o Arisu... Como pode sermos tão diferentes, mas tão parecidos ao mesmo tempo?
O n°2 da praia, o Rei de Ouros... ele desistiu da própria vida para que eu vivesse, mesmo eu já tendo desistido, eu não aguentava mais, simplesmente aceitei meu destino, e mesmo assim, ele errava de propósito, tenho muito a agradecê-lo, muito eu pensei em como usaria Kuina e os demais para me salvar, mesmo eles estando ao meu lado, mesmo ela sempre estando aqui, antes eu a usaria sem pensar duas vezes, mas agora...
Eu entrei na frente de uma bala para que Usagi não fosse assassinada, eu sempre levei a vida como uma grande brincadeira, mas agora, sentado aqui, encostado nesse carro de frente com o cara que me deu um tiro, eu simplesmente não consigo me arrepender do que fiz. Kuzuryu, eu tinha inveja de pessoas como você, e você deu sua vida pela minha mesmo eu já tendo desistido dela, eu sempre pensei que pessoas como você, e como o Arisu, me julgavam pelo jeito que eu era, eu via a vida de uma forma tão trivial, mas hoje, com essa bala no meu corpo, eu só consigo ver o quanto eu estava errado.
A vida é como um jogo afinal, mas, infelizmente, ela não tem o botão de Reset. Agora eu consigo ver com quem eu deveria me preocupar, e a quem deveria ter dado mais valor...
Se o que o Arisu diz for realmente verdade, e nós retornamormos para o mundo real depois que a Rainha de Copas for derrotada, espero que eu tenha consciência das coisas que aprendi aqui.Arisu, Usagi, estou confiando em vocês! Zerem esse jogo, por favor, quero poder arrumar minha vida lá no outro mundo... Quanto a quem eu me importo aqui... Kuina, espero que esteja bem, porque não sei se nos veremos novamente quando isso tudo acabar...!
Não sei se vocês concordam com tudo, talvez eu tenha dado uma viajada em alguns momentos, mas espero que tenham gostado de qualquer forma kkkkkk.
OBS: Fanfic postada também no Spirit!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Poderia ser Diferente - Chishiya (Alice in Borderland)
Fanfic◇É assim que me sinto após o jogo contra o Rei de Ouros, Kuzuryu, você me fez enxergar uma parte minha que eu perdi a muito tempo, em frente a uma maca do hospital pediátrico.◇ ◇ Isso é apenas algo que eu imagino que se passou pela mente do Chishiya...