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Cantou alto no carro durante todo o caminho para a casa, tamborilando no volante. Excepcionalmente, dessa vez não ligou ao ver sua vaga ocupada pelo vizinho encrenqueiro do 502. Essa noite, isso era um problema sem tamanho, um problema para outro dia. Também apenas sorriu e acenou quando o casal de idosos do 305 cismou de ocupar todo o elevador principal, obrigando seus filhos a encaixarem no cubículo, os pedaços de um móvel enorme que Kankuro sequer se deu ao trabalho de tentar identificar, embora aquilo fosse uma infração clara às normas do condomínio. Não seria justo ele, quem os delataria ao síndico. Continuou inabalável quando o zelador disse que o outro estava em manutenção.

Onze andares não seriam páreo para o homem que acabara de se inscrever no crossfit.

No quinto andar, é claro, Kankuro parou com as mãos nos joelhos para pegar fôlego. Quase a ponto de amaldiçoar tudo, o sorriso voltou a ganhar espaço em seu rosto. O calor do verão, o céu estrelado, o burburinho urbano e até os mosquitos de luz, finalmente tudo tinha uma aura diferente. O mundo sorria para ele e Kankuro sorriu de volta. Pela primeira vez em três anos, voltava para a casa com uma notícia boa.

Uma notícia boa e o peito cheio de esperança. Voltou a correr. Mentalizou um pedido de desculpas ao passar pelo décimo andar. Sinto muito vovó, outra hora. Foi direto. Só parou na porta de casa.

Resmungou contra a fechadura digital, secou o dedo na blusa o melhor que pôde e tentou, de novo e de novo. Cruzou a soleira se sentindo um herói, vitória do homem sobre as máquinas.

Deparou-se com a escuridão. O cheiro de lavanda lhe invadiu as narinas. Kankuro não precisou acender a luz para progredir seu caminho, tampouco para saber que tudo estava perfeita e irritantemente organizado. Sua animação deu uma cambalhota no estômago, tudo parecia normal, mas a lavanda hoje não era só desinfetante, era incenso. Talvez ele também estivesse de bom humor. Era uma possibilidade muito, muito, muito remota. Essa noite, era o suficiente para Kankuro se agarrar.

Se aproximou do quarto do irmão, como sempre, cauteloso. No geral, inspirava e expirava no mínimo cinco vezes, preparando o espírito para o que poderia encontrar. Mas nunca batia, nunca se anunciava. Nunca mais depois daquela vez. Espiou o Apple Watch, 21:35. Colou um ouvido na porta. Vozes. Mão na maçaneta, abriu.

Toda a luz que não havia no restante da casa, estava ali. Gaara estava sentado atrás de sua mesa de trabalho, descalço, usava as calças de um pijama e uma camisa social, maltratada por um dia inteiro de reuniões virtuais. Os cabelos exalavam uma tentativa falha de ordem e Kankuro sabia que por trás da maquiagem, olheiras enormes delatavam inumeras noites mal dormidas - isso quando dormidas.

— Entendo — ele dizia para alguém atrás da tela do notebook. — Mas ainda são cláusulas leoninas. Não posso assinar desse jeito.

Gaara o olhou de lado, notando sua presença. Era um jeito cruel de olhar. Frio e irritado, quase ameaçador. Kankuro odiava aquele olhar desde criança, mas nunca se deixou parecer intimidado. Acreditava que apenas por isso, era a única pessoa que Gaara não conseguiu expulsar de sua vida.

— Nós já revisamos esse contrato três vezes e você continua dizendo isso, talvez seja melhor fazermos isso juntos, pessoalmente.

Você? Kankuro confirmou o quanto não entendia nada do mundo corporativo. Achava que a informalidade só cabia nesse meio em livros eróticos. Se não conhecesse muito bem o irmão, ficaria preocupado. E por conhecê-lo tão bem, tamanho foi o espanto quando o ouviu responder:

— Tudo bem, converse com a Matsuri para combinar. Mas na segunda-feira, ela está de folga até lá.

Kankuro gostaria que ele se preocupasse com os próprios horários como se preocupava com a secretária. Se o fizesse, a coitada teria mais confiança para relaxar. Sempre que longe, Matsuri bombardeava Kankuro de mensagens, questionando se estava tudo bem com seu chefe. Ela chegou como uma trainee, porém Gaara viu alguma coisa nela e, excepcionalmente, a deixou se aproximar. Por isso Kankuro a respeitava. Precisava de uma aliada e Gaara de uma amiga.

Uma despedida rápida e a videoconferência foi encerrada.

— Você vai a uma reunião presencial? — disse sem resistir a um tom jocoso.

Gaara fechou o notebook como se o objeto o tivesse xingado, estalou os dedos e o pescoço.

— A menos que você queira ir por mim.

— Nem vem - Kankuro torceu uma expressão de repulsa. — Assinei aquela procuração para nunca ter que passar por isso.

— Então não enche.

Gaara se levantou. Meio curvado, com a mão na boca do estômago. Arrastou os pés em direção à cozinha. Kankuro o seguiu sem acreditar que ele ainda teria coragem de passar mais um café. Não se desgastou com sermão, havia levado consigo todas as cápsulas antes de sair. Nunca viu o porteiro tão feliz, com certeza ganhou um aliado na próxima briga de garagem.

Gaara suspirou desapontado e resignou-se a aceitar um copo d'água com antiácido. Kankuro tirou uma pizza do congelador e se pôs a pré aquecer o forno. Parecia combinar com o dia.

— Aconteceu alguma coisa?

— Por que? — Kankuro rebateu, sonso, tirando a louça dos armários.

— 'Tá sorrindo esquisito, me cercando com cara de quem quer alguma coisa e não sabe pedir. Vamos usar talheres!?

Kankuro engoliu o riso. Uma raridade, alugou um espaço na cabeça do irmão. De posse de toda a sua atenção, se preparou. Esse era o momento. Sentou na bancada da cozinha, mesmo sabendo que Gaara odiava.

— Sabe a minha academia...

— Hã? — Gaara cruzou os braços, cenho fechado.

— Aquela que você odeia...

— Quer dizer a que custa um valor obsceno, quando tem uma dentro do seu condomínio que não seria uma despesa extra e cumpriria o mesmo objetivo?

— Ah não, cara, a experiência é completamente diferente, você precisa ver, eu juro. Ela vale o preço.

Gaara engoliu um debate inteiro. Vinha furioso com essa empresa há tempos. De repente aquilo se tornou o McDonald's das academias. Para onde quer que olhasse, abria uma filial. Filial, não franquia. Se ligasse a televisão, não demoraria a ver um anúncio, a publicidade nas redes sociais o fez considerar pagar a versão premium de tudo. Era como Kankuro disse, o sucesso vinha da experiência vendida, havia toda uma proposta de ambiente inclusivo, dentre outras coisas que faziam Gaara se lembrar muito de discursos coaching. Fora o fato de odiar esse tipo de ambiente, perdeu para a concorrência a construção de todas as obras e ainda tinha que pagar uma pequena fortuna, uma vez que seu irmão, sua secretária e até a enfermeira da sua vó, estavam obcecados com essa academia. Gaara bufou e fez um gesto para que Kankuro prosseguisse.

— Conheci o dono. Ele deu uma palestra lá hoje.

— E daí?

— Ele me perguntou de você. Pediu seu telefone.

Gaara quase riu. Se ocupou de colocar a pizza no forno. Programou trinta minutos no temporizador.

— Não tem mais um metro quadrado nesse país onde ele já não tenha colocado um haltere. O que eu posso fazer agora?

— Não foi... desse jeito. — Kankuro respirou fundo. Não havia jeito certo de falar. Arrancou de uma vez o band aid — É o Lee. Ele é o dono.

Silêncio. O tique e taque do temporizador soando como marteladas. Gaara lançou ao irmão um olhar de incredulidade e ameaça. Não foram poucas as vezes que Kankuro chegou em casa com uma grande notícia sobre Rock Lee e Gaara se levantou da cama apenas para descobrir que era falsa e a única coisa que seu irmão queria era que saísse do quarto por cinco minutos. Mas Kankuro sustentou o olhar. Sério. Até parou de roer as unhas para isso. O cheiro de queijo gratinado e orégano tomou conta da cozinha.

Kankuro tirou o celular do bolso e abriu o WhatsApp. Mostrou uma conversa com Lee, clássica, aquele "oi" de ambas as partes, só para trocar e salvar os contatos. Porém, cerca de uma hora depois disso, Lee enviou um áudio. Kankuro não o reproduziu.

— Eu já sei o que é. Ele gravou do meu lado. Me pediu para te mostrar. Eu teria passado o seu número, mas ele não quis. Eu também não sabia se você iria querer.

o período em branco [GAALEE]Onde histórias criam vida. Descubra agora