O dia estava quente. Não do tipo quente incandescente, mas quente em suas cores e alegrias. Quente como o gosto da laranja do bolo que acaba de sair do forno. Quente como se deitar na cama após um longo dia. Lembro-me de ver a velha bruxa da casa ao lado rir diante de uma conhecida e o Sr. Laba modificando vidro derretido nas mãos sem luvas. O normal tão natural se dissolvia entre meus dedos, eu só era ignorante o suficiente para não notar o indício.
Ouso dizer que estou errada, ainda mais depois de anos de cicatrizes em cima de mais cicatrizes, mas todos os dias eram assim. Quentes.
Eu saí para lhe ver, sabia?
Faria qualquer coisa, juro pela minha não liberdade, que faria de tudo para que você soubesse disto.
Meus pés ágeis e infantis, verdes e ligeiros, caminharam diante de meu pequeno vilarejo, o misto de todos os sentidos atingindo-me em uma felicidade nunca antes vista. As pessoas tendem a pensar na felicidade como algo supremo, o ápice do momento, um sentimento avassalador que esquenta as veias e agarra o coração; estão tão enganadas como são tolas. Felicidade e alegria possuem divergências, e estou aqui para dize-las apenas porque é a única coisa que me resta.
Felicidade é estado, satisfação andando em sua volta. Alegria é passageira, fruto de momentos estéreis.
Estou enganada? Como poderia estar? Eu era feliz e estava alegre.
Mas pouco disso importa no tempo presente, eles não tem palavra para essas duas coisas. E isso talvez signifique que não há lugar para tais nos seus corações, já que tudo o que faço é escutar seus resmungos profanos. Ainda bem que ficamos no passado, onde os lírios tinham gosto de esperança e os lagostins cantavam suas orações na lagoa.
Lembro-me acenar diante das Velhas Senhoras tecendo seus tecidos pálidos, onde traçavam a história da história. Mas aquilo de nada importava já que meu coração se enchia e pulsava somente pela ânsia de vê-la, e tudo o que eu podia sentir era bondade dos quatro cantos da terra.
Tola. Tola. Tola.
Eu a amava. Eu a amava com todo o meu maldito coração. Porque você fez isso. Pegou parte por parte do meu coração e o fez teu, sem sequer pedir a sombra da permissão. Vi-me tão desesperada que não entendia, não poderia entender, que isso se tratava de amor. E, pelo Vazio, você fez isso sem qualquer resquício de esforço. Colonizou meu coração, foi isso o que fez, sem se importar com minhas objeções ou desejos. Tu me fez parte de si, um objeto curvado em teus pés esguios. Me modelou em mãos gentis e cheias de graça e me tornou você, apenas vivendo em outro corpo.
Minha alma é sua. Minhas rachaduras são suas. Sou apenas você do lado desconhecido do espelho.
Fui ao nosso lugar, o tal cenário onde eu costumava passar horas escovando seus fios vermelhos entre os dedos, adorando-a sem dizer uma palavra. Seu sorriso me trazia o cósmico e sua voz era quase tão bonita quanto as dos lagostins. E ali eu era feliz. Eu era uma garotinha teimosa, como eu era; proclamava a todos que tu era minha, quando na verdade isso era só uma mentira. Mas gostava de pensar assim, gostava de ter algum controle em minhas mãos. Isso foi o mais perto da mais caricataca palavra: liberdade.
Mas, quando cheguei, a praia estava vazia. Fria, sem vida. A dor arranhou meu peito, o lembrete insistente de que algo estava (está) errado. Você não estava (está) ali. Onde estava (está) você?
E então, eu notei.
Embarcações enormes atracadas na areia, feitas de aço, não madeira. Há muito as Velhas Senhoras me avisaram dos Homens Ambiciosos e suas máquinas estranhas, voando de cidadela em cidadela e dizendo a quem pudesse ouvir que agora lhes pertenciam. Eram broncos e burros e brutos, violavam a Lei do Vazio bem como violavam terras, homens e animais.
Você nunca soube que pensei em ti quando esses tais homens apareceram na minha frente, portando suas armas e seus desejos.
Foi ali que eu conheci o que significava, de fato, colonização. A tua era boa... Trazia maresia para meus pulmões e renovava minha alma. Daqueles homens, no entanto, era cruel e rasgou meus ossos.
Eu era feliz.
Tomaram-me minha pequena liberdade, arruinaram os tecidos pálidos, roubaram as famílias, queimaram casas, violaram mulheres e crianças, torturaram as Velhas Senhoras e cortaram as mãos do Sr. Laba pelo dom que o pertencia. Acorrentaram meus pulsos tal como arrancaram meus olhos quando testemunhei uma crueldade de qual nem me lembro mais. Se tornam insignificantes quando acontecem com frequência, certo?
Mas meu coração, não. Ele continuou intacto. Você não pode imacular o que nem lhe pertence, colonizar algo que já foi colonizado. Meu coração continua sendo teu e parte de ti.
E me sinto oca desde que você se dissolveu e o deixou sozinho.
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colonização de artérias.
Poetryporque aconteceu assim, você foi tomando partes de meu coração e proclamando que ele era teu. © quorcis | 2023 | drab. tw: violência e abuso.