Madrugada chorosa e laços

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Vance Hopper odiava muitas coisas. Albert Shaw era a principal delas. Mesmo longe aquele homem ainda o assombrava. A raiva espumava dentro de si como uma besta faminta. Seus punhos já não batiam mais como antes, ele não brigava até tirar sangue desde que foi resgatado. No fim, a terapia obrigatória serviu para alguma coisa.
Mas suas mãos ainda se manchavam de vermelho, toda vez que apertava os dedos e os cravavam na sua carne quando ele fechava os punhos, a lembrança daquele homem rindo enquanto o estuprava se alastrando por sua mente como um maldito parasita, cada vez mais consumindo sua cabeça e seu coração conforme suas unhas se afundavam na pele clara até que tudo que podia sentir era o sangue quente escorrendo entre seus dedos. Tudo durava um minuto, mas ele carregava esse minuto todos os dias da sua vida.
Infelizmente, Vance não era o único a carregar esse homem em sua mente.
Ainda era madrugada quando um soluço abafado o acordou. O Hopper não era um rapaz que sentia medo facilmente, pelo menos antes, agora, o mínimo suspiro de um homem adulto o assustava. Quando ele percebeu que o namorado não estava na cama com ele, Vance ficou com medo.
- Bruce? - Ele chamou, se levantando, o barulho de outrora vinha do armário do quarto. O loiro caminhou até lá, ele tentou ir com calma, falhando miserávelmente, a preocupação impedindo que agisse com cautela, ele praticamente voou até o outro lado do quarto.
O Hopper abriu a porta do armário branco com mais força do que inicialmente planejou. Ele sentiu o arrependimento vindo e indo rapidamente quando o Yamada o olhou assustado. Não durou muito, Vance estendeu a mão para Bruce, e o olhar assustado se tornou triste e amedrontado conforme estendia sua mão até a do loiro.
Puxou o outro garoto para si quando suas mãos se juntaram e o abraçou com força. O asiático não demorou em enterrar o rosto no pescoço do namorado, o choro que antes ele tentava guardar explodiu como uma represa, as lágrimas umedecendo a pele clara do loiro.
Era difícil ver a pessoa que você amava assim, tão quebrada, mas Vance continuou segurando Bruce contra si, deixando que ele colocasse tudo que estava o correndo para fora.
O Yamada demorou alguns minutos para se acalmar. Eventualmente, sua respiração foi se estabilizando e o choro diminuiu. Ele estaria mentindo se dissesse que os braços em volta de si e o calor familiar não ajudou.
- Caralho amor, que susto - Vance se desvinculou do abraço, só para poder segurar o rosto do outro garoto com as mãos - O que aconteceu?
- E-Eu tive um pesadelo. Desculpa, eu não queria te acordar. Por isso fui pro armário.
O loiro suspirou, depois começou a secar o rosto do namorado com os polegares.
- Tudo bem. Mas fica na cama na próxima vez, não ligo de acordar.
Bruce riu um pouco com a fala e colocou o rosto no pescoço de Vance mais uma vez. O Hopper era péssimo com palavras, a maioria das pessoas o consideravam grosso pele falta óbvia de delicadeza. O asiático não se importava, ele tinha se acostumado com isso muito antes deles começaram a se gostar. Quando Vance estava confortável as palavras se tornavam mais fácies. Entretanto ele não estava confortável agora, e sim, preocupado.
- Desculpa. Na próxima eu fico na cama.
O loiro não conseguiu evitar e desviou o olhar para o chão.
Haveria uma próxima vez, os dois sabiam disso. Desde os sequestros Bruce tem tido noites inquietas. A insônia se tornou sua companhia e ele já não conseguia manter um sono longo. O máximo que o garoto conseguia dormir eram por 3 horas seguidas. Às vezes ele dormia 5 entre cochilos picotados. Muita das vezes ele acordava depois de algum pesadelo.
Vance não disse nada, apenas puxou o namorado para cama, indo devagar dessa vez. Mesmo que fosse de sua natureza ser bruto, tanto é que diversas vezes ele bateu a cabeça na parede por se jogar na cama de qualquer jeito, ele sabia que Bruce precisava que ele fosse cauteloso. Agora que a euforia e o medo inicial se foram, o loiro tomaria mais cuidado.
- Quer me contar como foi esse pesadelo? - Vance pergunto pouco depois que ele se deitaram. O Hopper estava enconstado na parede enquanto Bruce descansava no seu peito.
- Eu não lembro de muita coisa pra ser sincero. O Agarrador estava lá, ele ficou tocando no meu cabelo - Vance sentiu a raiva borbulhando em seu interior. O asiático passou praticamente pelas mesmas coisas que o loiro. Pensar naquele homem machucando, humilhando, abusando seu namorado fazia o Hopper querer gritar, o fazia querer dizer tudo de mais grotesco que existe para Albert e depois, o fazia querer matá-lo com suas próprias mãos.
Por enquanto, Vance se contentou em contar até 10 mentalmente. Ele depositou um beijo rápido no topo da cabeça do outro garoto. Foi um pouco brusco, mas Bruce não se importou, apenas se ajustou mais na sua posição, podendo olhar para Vance agora.
- Você estava lá também, todos os garotos estavam... - o Yamada ficou muito cabisbaixo após dizer isso, o que deixou o Hopper um tanto desesperado.
- Mas vocês sumiram. Eu não achava você em lugar nenhum. Ele ficava rindo, dizendo que eu estava sozinho, que matou vocês, que e-eu... - A última palavra saiu num fio de voz, Bruce não conseguiu terminar a frase antes de começar a chorar de novo.
Vance abraçou ele com força novamente, se xingando mentalmente por não saber como consolar o próprio namorado com propriedade. Dado a sua infância pouco carinhosa, o Hopper nunca foi bom com sentimentos.  Sempre que o pai o batia, sua mãe não fazia nada além de abraçá-lo, muitas das vezes não falando um "a" sobre o que acabou de acontecer. Ela era tão vítima do marido quanto Vance. Não é atoa que faleceu tão cedo. A doença tomou conta de seu corpo e sua mente não tinha forças para lutar contra. O período que sucedeu sua morte só não foi pior do que o inferno que viveu naquele porão mofado e doentio.
Não importava de todo modo. Sua mãe se foi a tempos e o luto também. Restavam apenas saudades agora. Vance tinha outro foco no momento que não era a falecida matriarca.
O asiático chorou alto por alguns minutos, se rendendo a um choro silencioso logo depois, visivelmente exausto. Só quando a respiração de Bruce estava se regularizando foi que Vance falou alguma coisa.
- Hey, eu estou aqui, okay? Todos estão. Aquele merda está preso, ele nunca mais vai fazer nada com mais ninguém, nunca.
O loiro não considerava aquilo um consolo. Ele sempre foi mais radical que o namorado, na cabeça dele, Albert morto era a única idéia que conseguiria acalmá-lo. Não era assim com o Yamada, saber que o Agarrador estava apodrecendo atrás das grades já era o bastante para ele.
Bruce olhou para Vance. Os olhos vermelhos e inchados, as bochechas coradas e a tristeza tão clara em sua expressão que, por um segundo, o loiro quase desviou o olhar.
- Eu sei disso. Mas foi tão... Horrível. Amor, ele disse que eu era dele. Não no sonho, quer dizer, lá também. Mas quando eu estava preso - o Yamada parecia querer chorar de novo, mas se conteve.
Que porra. Não, não e não.
-Isso é a porra numa mentira, Merda. Você não é daquele filho da puta, nunca foi! Você é livre, aquele bosta não tinha direito nenhum de prender a gente lá - Vance se exasperou, desencostando da parede.
- Eu sei. Caralho, eu só... Fiquei com tanto medo, eu achei que você estava morto, achei que nunca mais ia ver você ou minha família de novo. Não tinha como escapar, eu já havia tentado de tudo. Quando ele falou isso, o momento em que ele falou isso, sei lá, foi como se toda minha esperança fosse brutalmente arrancanda. Meu mundo caiu completamente.
Vance entendia. E como entendia. Ele passou pelo mesmo. O Agarrador não disse nada para si além de que o loiro era uma menino mal-criado, ele e Bruce eram diferentes e foram tratados como tal. Mas a sensação de desilusão, de desesperança, essa eles compartilhavam.
O nervosismo começou sem que o Hopper pudesse evitar. Ele não sabia o que dizer. O Yamada acabou de dasabafar algo tão sofrido com ele, e Vance não fazia idéia do que fazer.
Fechou os olhos, na tentativa tola de encontrar as palavras e a coragem que precisava, o que certamente não foi uma boa idéia. Sua mente maldita insistia em pregar peças em si. Ele imaginou o namorado, frágil, ferido, completamente a mercê daquele psicopata filho da puta. Vance sentia uma pontada de dor sempre que pensava no quanto o Yamada sofreu, no quanto todos sofreram, no tanto que ele sofreu.
O loiro xingou baixinho, esquecendo totalmente que estava na companhia de outra pessoa e o quão idiota ele parecia naquele momento.
Despertou daquele tupor quando sentiu mãos quentes segurando seu rosto. Os polegares acariciando suas bochechas. Nunca fora receptivo para toques carinhos assim antes, Bruce era o único que conseguia quebrar suas barreiras assim e até mesmo ele tinha dificuldades em amar o loiro as vezes, alguns dias, Vance se tornava tão distante, e o Yamada dava um tempo a ele, nunca forçando nada. Embora não pudesse negar que se entristecia.
Mas hoje não era um desses dias, estavam se tornando cada vez mais raros de qualquer maneira.
- Desculpa - Começou. O asiático negou com a cabeça - Não, não, é sério, me desculpa. Olha, eu preciso te dizer uma coisa.
Simplesmente escapou, Vance não planejava dizer isso, não agora, mas por alguma razão, de repente sentiu que aquele era o momento. Bruce olhou para ele, claramente curioso, a expectativa visível em seus olhos quando soltou as mãos do rosto do namorado.
- Eu... Porra - Não estava conseguindo, céus, ele queira tanto, mas era tão difícil. Ele próprio nunca ouviu essas palavras antes de começar a namorar, e nunca tomou iniciativa para dizer primeiro.
Bruce suspirou.
- Van, está tudo...
- Eu te amo!
Vance sorriu depois de dizer. Ele conseguiu, e merda, o sorisso de Bruce pareceu limpar sua alma, como um banho quente após uma saída no inverno de Denver. Foi como mergulhar em água morna. Caralho, era tão bom.
- Eu também amo você - Os olhos do Yamada se encheram de água. Era tão simples, mas tão intenso que ele esqueceu completamente do pesadelo que atormentou seu sono e sua noite. Quando uma lágrima escorreu pelo rosto pardo em uma linha fina e molhada, o Hopper sabia que pela primeira vez em muito tempo de dor e mágoa, Bruce estava chorando de alegria.
Foi a vez de Vance segurar o rosto do namorado.
- Eu te amo, Yamada. E isso nem os céus pode arrancar de mim. De nós. Albert não pode, o que eu sinto por você ele nunca vai conseguir colocar as mãos.
Bruce o olhou surpreso, chorando mais ainda. Ele limpou o rosto com os pulsos, um sorriso que poderia rasgar seu rosto de tão largo.
Quando o lábios se uniram, um juramento silencioso foi selado. Ainda existia algo, na escuridão uma fagulha que era o amor deles. Eles iriam reconstruir a esperança juntos. A chama foi acessa, a tocha que guiará suas almas em sofrimento até o repouso e a paz. Eles eram livres e escolheram um ao outro como companheiros, não foi imposto sob eles, não era como os laços forçados que o Agarrador tentava criar. Seus 'Eu te amo' foram sinceros, vindos da mais pura vontade de estarem unidos um com o outro.
Vance Hopper amava muitas coisas. Bruce Yamada era a principal delas.

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