Capítulo Único

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Era humilhante o rumo que sua vida tinha tomado.

Em um dia, era a dona da Palmeiral, mandava e desmandava na cidade inteira, tinha todos na mão. No outro, estava morando em um casebre no fim do mundo, carregando latas d'água e substituindo suas camisas de marca pelo vestido da tal de Saninha. Pelo menos essa parte ela reverteu, quando recebeu suas malas de volta. Agora, para piorar, chorava o leite derramado, sentada na cama daquele lugar.

Que desastre.

Deodora estava muito triste, sim, mas também estava com ódio. Ódio de ter sido deixada para trás, da ingratidão do filho e do marido depois de tudo que fez pela família. Ódio de Canta Pedra e todos os seus moradores que preferiram espalhar fofocas e julgá-la do que tentar ao menos entender seu lado, ainda se vingaria de todos eles. Todas essas pessoas que não quiseram ajudá-la.

Tinha sido deixada completamente sozinha.

"Deodora?" Pajeú a chamou, encostado na entrada da casa.

Na verdade, tinha sido deixada completamente sozinha, exceto por uma pessoa. Uma mão estendida em sua direção, que a acolheu e cuidou de seus machucados. Por fora e por dentro.

Ela se assustou, passando as mãos pelo rosto para secar as lágrimas. Só então se virou para ele. "Oxe... tu tava aqui, é?"

"Acabei de chegar." Ele fechou a porta, deixando no chão a lenha que tinha ido buscar, e foi até Deodora. "Tá tudo bem?"

"Tudo perfeito." Respondendo com sarcasmo, ela revirou os olhos. Um instante depois, suspirou, um olhar triste e marejado voltando à sua expressão - a cada dia, suas defesas diminuiam mais, perto dele. "Eu não acredito que eu voltei pro ponto zero, Pajeú."

Ele sentou ao seu lado na cama, sem entender direito do que ela estava falando. Isso é sobre Tertulinho? "Como assim?" Pajeú conseguia ver que ela estava hesitando em falar, o que só o deixou mais preocupado ainda. "Eu quero bem, eu lhe amo. Pode me contar o que tu quiser."

Deodora olhou para o ex-jagunço, em dúvida se deveria mesmo se abrir desse jeito com ele. Já houveram mentiras demais entre os dois, não precisavam de mais segredos. Melhor agora do que nunca - ou do que por fofoca. E, como ele mesmo tinha dito, Pajeú não queria seu mal. Ele não contaria isso a ninguém. "Minha vida nunca foi esse mar de rosas que pensam que foi, não, viu?" Ela apoiou-se nos cotovelos, fitando o chão. "Meus pais eram de outro país, tu sabe? Tu não deve conhecer, mas eles fugiram pra Roraima, porque qualquer coisa era melhor do que aquele inferno. Eu cresci no garimpo, não era nada fácil. A gente tinha que fazer o que desse pra sobreviver..." Ela se perdeu no que dizia, sua mente sendo invadida por um tsunami de pensamentos. As violências que sofrera naquele lugar, tanto verbal quanto física; era horrível estar cercada de garimpeiros que não tinham uma intenção boa por trás de seus atos, e deixavam isso bem claro. Sempre tomavam o que queriam, não importava se tinham permissão ou não. A palavra dela nunca valeu nada naquela Vila Surumu, não contra aquele bando de homens. Foi aí que começou a revidar do seu jeito, sempre foi mais esperta do que todos ali. Não que isso facilitasse a situação. Deodora piscou algumas vezes, tentando se prender ao presente. Sentia a mão de Pajeú em seu ombro, mas nem notava sua presença direito, preso na superfície. Era como se estivesse se afogando de verdade. Se sentia sem ar, com um aperto no peito e um desespero na alma. Mesmo assim, se forçou a achar sua voz para continuar. "Eu entrei pro cabaré de Ana Solita, pra conseguir ganhar a vida." Foi naquele lugar que tinha aprendido a usar uma das suas maiores armas de manipulação: sua sedução. Porém, também foi lá que passou a ver o amor como uma outra forma de se defender, como atacar antes de ser atacada. Foi só com Pajeú que ela encarou esses sentimentos completamente, além da paixão e da proteção, da conveniência e do costume. Amor além da manipulação. Era uma intensidade com a qual ela não estava acostumada, e que a assustou a princípio.

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