Você se lembra ?

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A primeira vez que fazemos algo novo é muitas vezes, inesquecível. Diferente, e até um pouco mágica. Mesmo quando nos tornarmos adultos e as responsabilidades pesam nas costas, ou quando achamos que somos invencíveis e durões por termos deixado de ser criança. Mesmo assim, sentimos o frio na barriga, os músculos tensionam e as pernas congelam. Foi assim que me senti naquele dia. Exceto, que eu me sentia desse jeito ao ver alguém, que estava longe de ser a primeira vez. Muito pelo contrário, talvez estivesse se aproximando de ser a última.

O período de transição entre as eleições, é um tanto turbulento. Trocas de cargos, novas pessoas, muitas entrevistas e apertos de mão cordiais. Estou mais que acostumada com as pessoas. Lido bem com elas, afinal, já são quase trinta anos na política. A exceção aconteceu no ano de 2018. Lembro-me de queimar a língua com um chá quente ao ler a notícia passando na televisão. Ela. Eleita. No mesmo cargo que o meu. Fiquei estática por um tempo, processando aquela informação. De que eu teria que vê-la. Que Soraya Thronicke fazia parte da minha vida mais uma vez.

Não foi uma chuva de lembranças, foi uma tempestade. Tornar real novamente a figura que significou tanto no passado, trouxe tudo à tona. Como uma ventania insana. Barulhenta, imprevisível.
Ela estava bem cuidada, como sempre. Clareou os cabelos com o passar dos anos, sem perder a pose juvenil que possuía desde que a conheci. Tinha o corpo de sempre, com ares mais maduros e curvas que eu desconhecia, pois seu toque sumiu dos meus dedos há tanto tempo, que era até difícil me lembrar do tempo em que nossa pele era uma só. Mas eu lembro. De esquecer meu cachecol no corrimão da escada da casa dela. Aquele dia, longe atrás, era outonal sem o frio. As meias-calças eram suficientes para me proteger além do suéter creme. Pendurei o cachecol como se fosse busca-lo novamente.

Nunca o busquei. E ele se perdeu no tempo, com a certeza que eu tinha de que Soraya havia o guardado, até hoje.

O cachecol soou na minha cabeça como uma campainha, quando a vi no seu primeiro dia como senadora. Não sei porque, mas ver seu cabelo balançando conforme ela falava, me fez lembrar das longas viagens de carro. Cantando Legião Urbana, sumindo no Estado. As folhas laranja caindo, como tinham de ser. Consigo imaginar a cena, mesmo depois de todos esses anos. Claro que eu sei, que ela seguiu em frente. Se formou na faculdade, teve um filho. Seguiu com a vida. Sei que a magia evaporou.

Posso estar bem, mas acho que nunca me recuperei dela.

"Pensa rápido!" Soraya jogou as chaves nas mãos frias de Simone, que a pegou no ar pelo chaveiro escrito: "abaixo ao patriarcado". Naquele dia se sentiam felizes e plenas de conseguirem passear. Comeram do prato que mais gostavam, e selecionaram somente as músicas favoritas para tocar no carro naquela volta pra casa. Exceto que "casa" significava algo diferente para as duas. Soraya sentiu o impulso de dizer que o que tinham, era amor. Mas, lhe faltou coragem. Desconversou com um assunto banal, que logo se transformou em outro, e a conversa aumentou conforme a velocidade do carro andando. Nunca deram um nome para o que viveram, não até terminarem, meses depois. Quando uma troca de mensagens de tornou uma ligação, e a ligação se tornou um encontro na madrugada. Não havia mais nada que pudessem fazer além de dizerem adeus. Já haviam se esquecido tanto uma da outra, que sequer lembravam do porquê deveriam.

E lá estávamos nós de novo. Quando ninguém podia saber dos encontros noturnos da professora de Direito Administrativo e sua aluna mais dedicada. Dessa vez, não para que pudéssemos trocar os beijos nas sombras e planos de amor feitos de papel. Aquela madrugada serviu para que eu descobrisse, que ela sempre me manteve como um segredo, enquanto eu a mantinha como uma promessa, um juramento. Disse para ela uma vez, e ela concordou quando prometemos que jamais esqueceríamos, de nós.

Vendo ela assim, distante de mim, conversando com os novos colegas senadores, tirando fotos e claramente muito feliz de estar ali, não me deixava dúvidas que o tempo embaçou sua memória de nós. Talvez tenhamos nos perdido na tradução. Ou, talvez eu tenha pedido demais. O que tivemos foi uma obra prima, que só restavam as ruínas.
Tive vontade perguntar, totalmente imersa nas lembranças enquanto o burburinho ao meu redor acontecia: Por que você me ligou naquela noite ? Para me quebrar como uma promessa, numa maneira casual de ser cruel por ser honesta. E eu fiquei lá, pendurada naquela ligação e naquela última noite. Partida em pedaços.

Eles dizem "tudo vai bem quando acaba bem" mas, é sempre um novo inferno quando sua voz ecoa em minha mente. Você falou: "Talvez se nossa relação fosse menos complicada, se tivéssemos nos conhecido em circunstâncias diferentes..." Ouvir aquilo me matou de tantas formas, que numa vida só eu não encontraria uma forma de curar as feridas.
Escutar na semana seguinte que eu estava taciturna, distante ao aplicar a matéria para os meus alunos. Ela estava lá quando um aluno meu perfuntou: "aconteceu alguma coisa, professora ?"

Ela. Ela aconteceu. Soraya que enfeitiçou meus dias com o jeito vibrante e alegre, minhas noites com a forma traiçoeira que embalava seu corpo no meu. Esse mesmo aluno da pergunta, percebeu o quanto meu sorriso era iluminado, pela luz dela.

O tempo não passa. Parece que congelei nele. Gostaria de ser a pessoa que eu era antes dela, mas não me encontro mais. Nem nas coisas que enviou de volta para a minha casa numa caixa surrada de papelão. Com exceção do cachecol, que ela não devolveu. Eu gostava dele, talvez até tornasse a usar. Sentir o cheiro suave que exalaria o frescor de um sentimento intenso.

Soraya terminou a conversa longe de mim, caminhando com sutileza por cima dos saltos e quase encontrando meu rosto na singela multidão de senadores. O seu jeito de andar me levou de volta. Me jogou longe como uma catapulta quando percebi que ela se aproximaria. Fugi dos seus olhos por breves instantes antes de me perder nas piscinas castanhas que me encaravam com fervor. Aqui estávamos. Nós. Quando eu te amava demais. Naquele tempo em que você escolheu perder a única coisa real que lhe ocorreu.

Paradas frente a frente, notei que ela também não sabia o que fazer. Não me cumprimentou de primeira, mas também não fechou a expressão. Esperava que eu tomasse a iniciativa e o tom da curta conversa que teríamos. Pela maneira que seus olhos transbordavam em curiosidade, mistério e talvez, eu tenha inventado, uma pitada de desejo, eu quase pude ver que ela também resgatava algumas coisas na memória. Olhava nos mesmos vitrais partidos, as memórias manchadas com a surra do tempo.

A chama gêmea também te queimou ? Só entre nós... esse caso nosso também te mudou pra sempre ?
Quis perguntar, e engoli cada palavra. Os curativos já eram velhos, arrancá-los dessa forma doeria demasiadamente.

Não havia desconforto entre eu e ela. Estávamos ambas penduradas em lados opostos de um abismo que poderia ter sido o nosso amor. E ela sabia disso. Olhava meus olhos com carinho, e delineava minha boca com timidez, como se se arrependesse de sequer ter pincelado os olhos em alguma parte do meu corpo. Como se, ela olhasse para algo que não era seu e jamais seria. Com mágoa, sentimento e... saudade. Li em sua íris castanha uma saudade velada, esquecida e enterrada. E eu sabia ler perfeitamente a linguagem daquela mulher, não desaprendi com o passar dos anos.

- Eu estava lá, Simone. Eu me lembro de tudo muito bem. -


no twitter: @woodvalefairy

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