Capítulo Único

351 34 1
                                    

O olhar bicolor sobre a imensidão negra que aqueles olhos tinham se tornado era intensa, se encaravam sem pausas como se estivessem jogando quem pisca primeiro, mas não era um jogo, aquele olhar que os prendia um no outro não era um jogo, Dante até pensava estar caindo no “Jogo de sedução” - Como Ivete apelidou - Do Cervero que com apenas simples palavras, gestos ou toques conseguia tirar o tatuado da órbita, tirando seu foco e o desconcertando em um nível que tinha esquecido ser possível desde que ela se foi, mas não era um jogo, se sentia atraído por aqueles olhos que guardavam mais do que qualquer um podia imaginar,  e agora, podendo ver de novo os olhos heterocromáticos, pode sentir o peso, a dor e a culpa que eles carregavam.

Arthur não merecia aquilo

Como pode deixar alguém de coração tão puro sofrer tanto?

Por que um homem tão digno, tão honesto e gentil sofreu tanto?

Como pode deixar aquele olhar de animação contagiante perder o brilho?

Agora era tarde, aquele olhar ingênuo e puro conheceu o quão nocente o mundo é, e infelizmente não podia anular isso, mas não estaria em paz consigo mesmo até ver aquele brilho retornar, não tinha como apagar os estragos que os malefícios do mundo tinham causado, mas poderia ajudar o Abutre a lidar com o que teve de vivenciar, e não deixaria o seu primeiro só nessa luta, seria torturante e difícil levando em conta que também tinha os próprios demônios a enfrentar, mas nem mesmo no ápice da loucura teria coragem de deixar alguém tão digno passar pela superação de tudo o que não merecia ter vivido de forma tão rápida e trágica só, Arthur não merecia estar só, e Gaspar, por um motivo no qual preferiu não se aprofundar muito, não o deixaria só, estaria ao lado dele em todos os momentos, seria a companhia silenciosa e, talvez, a que precisa gritar para que ele entenda se necessário, mas estaria ali, por todos os momentos que não esteve e pelos que vai estar.

Esses pensamentos acabaram por desengatilhar uma lembrança que por muito tempo esqueceu, e que agora, não deseja esquecer de novo.

— Por que ele é tão importante ‘pro cê? - A voz feminina abafada por trás do balcão disse de repente, assustando o homem que treinava as escritas de braille sentado sobre o balcão da loja de armas — O Arthur, não que esteja reclamando, mas a alguns meses ‘cê estava preso e só os ajudava por conta daquela menina, e agora dá a própria vida ‘pra proteger meu menino.

— Ele… Não merece passar por tudo isso — Se limitou a essas palavras quando ouviu uma caixa sendo colocada ao seu lado, imaginou que a mulher agora o estaria olhando e seria quase impossível dizer com sinceridade todos os motivos sentindo aquele olhar sobre si

— Ninguém aqui merece, nem sei ‘ocê — Convicta do que falava, a mulher passou a mão sobre o ombro do tatuado que parecia nervoso com aquela conversa — Eu sou velha, mas não sou burra guri, eu sei que não protege ele só porque ele não merece esse sofrimento — Concluiu com um sorriso fraco, também passando a se sentar no balcão com as pernas para parte de dentro, diferente do homem que estava de frente para todo o salão da ordem

— Não tem um motivo específico, ele só… é meu primeiro — Como se tivesse entendido o que Gaspar quis dizer com aquelas frases confusas jogadas ao ar, a mulher encerrou o assunto por ali, deixando o loiro com seus pensamentos que buscavam uma resposta sincera o suficiente para aquela pergunta

E tanto ele quanto Ivete sabiam o significado daquelas palavras, mesmo não sabendo as situações exatas, Ivete entendia que arthur foi o primeiro com quem Dante pode realmente contar, o primeiro abraço que o acolheu nos piores momentos, o primeiro a perceber quando ele estava mal, foi o primeiro toque que o confortou quando perdeu a visão, que se fez uma companhia silenciosa e tão importante nas noites de crise, que limpou até a última gota de suas lágrimas sem pedir nada em troca, que fez o ar voltar a percorrer o pulmão cansado quando a garganta se fechava e o que não conseguia falar acabava por se tornar uma nuvem de perguntas e pensamentos que deixavam sua cabeça doendo a ponto de sentir que explodiria a qualquer momento.

Foi o primeiro homem que amou, a primeira pessoa que conseguiu proteger, o primeiro a o entender e conseguir se acomodar em meio ao desastre que era sua vida e sua mente, o primeiro beijo que não envolvia malícia e nem pressa, o primeiro a fazer ele amar alguém mais do que a si mesmo desde que ela se foi com quem nem teve chance de amar.

Arthur Cervero foi o primeiro a me salvar de mim mesmo.

— Terra chamando Dante — Com alguns estalos frente a cara do tatuado, ele acordou balançando a cabeça e ouvindo a risada de Agatha ao seu lado — Cuidado que ‘c tá babando

Tinha se perdido naqueles olhos de novo, e eles nem estavam olhando para si dessa vez…

O Primeiro - DanthurOnde histórias criam vida. Descubra agora