História de pescador

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Você já viu uma sereia de óculos? Eu com certeza não, nunca tinha visto nem sereia, muito menos uma de óculos! Pelo menos até aquela noite.

Era uma madrugada de pescaria solitária. Só eu, o mar e as estrelas; ou era o que eu pensava. Quando eu menos esperava, comecei a ouvir um canto.

Uma voz bonita e melodiosa que me atraia… Foi quando eu vi. A coisa mais linda que eu já vi em toda minha vida, ela podia ter escamas, guelras e uma pele escura meio azulada, mas tinha forma de mulher, e que mulher. Cabelos negros escorriam por seus ombros, os olhos de um azul quase artificial que pareciam brilhar no escuro, um nariz aquilino que acentuava seu rosto bem definido. Ela era de tirar o fôlego.

A criatura se apoiou na beirada do pequeno barco, e começou a falar olhando para as iscas na minha frente:

— Pescador bonito, por que não ajuda essa pobre moça? Minhas pernas estão presas e eu não consigo subir, entre na água comigo e me solte, eu te recompensarei com muito prazer.

Eu tive vontade de rir, quem era o pescador bonito?

— Bela moça, acredito que não haja nenhum pescador bonito nessa direção, — brinquei — mas se precisar de uma pescadora de beleza mediana, estou a sua disposição.

A pele da criatura ficou ainda mais azulada, seria esse o rubor das criaturas marinhas?

— Me desculpe, senhorita — a criatura respondeu delicadamente — mesmo assim, ainda pode me ajudar? Está tão frio aqui…

Eu não cairia nessa, aquele rostinho bonito e voz doce não foram o suficientes para me hipnotizar, eu ainda via as características monstruosas da criatura, eu não precisava ver o rabo de peixe para saber que era uma sereia. Nós que tiramos o sustento do mar conhecemos bem seus perigos, krakens e baleias gigantes, tempestades e sereias devoradoras de homens, nós crescemos ouvindo sobre tudo isso.

Mas talvez eu estivesse hipnotizada de alguma forma, porque mesmo assim, eu a respondi.

— Na verdade, posso sim.

Vi seu rosto se iluminar, como uma criança que ganha um doce pela primeira vez. Senti o calor subindo pelo meu peito, mas ignorei. Tirei meus óculos do rosto e coloquei no dela.

— Para você não confundir mais suas vítimas, senhorita sereia. — Dei uma piscadela.

Até lembrar da expressão admirada no rosto dela faz meu coração palpitar.

Eu sei que eu deveria ter fugido, ter ouvido a voz do bom senso dizendo que ela iria me devorar, mas como eu poderia ignorar aquela criatura curiosa? Não conseguia ver ameaça numa sereia que claramente precisava de óculos.

— O-o que é isso? Que tipo de magia há nesse objeto? — A sereia indagava, sua voz estava mais aguda e veloz do que antes — As coisas não estão mais borradas, eu vejo com tanta clareza!

A sereia estava claramente muito feliz, era encantador o jeito que seus olhos se moviam, nunca parando o olhar em um ponto fixo, tentando olhar para tudo de uma vez só.

Eu com certeza estava hipnotizada, mas o quanto disso se atribuía as habilidades mágicas da sereia, acho que nunca saberemos.

— Se chama óculos — disse com uma risada baixa — e não é mágico.

A sereia estava boquiaberta, eu podia ver seus pequenos dentes afiados refletindo à luz do lampião. Um pequeno arrepio subiu pela minha espinha.

— Pode ficar com eles se quiser.

Eu tinha extras em casa, e afinal, eu só tinha duas opções: ser devorada e nunca mais precisar dos óculos ou dar eles de presente e rezar para que ela me deixe ir para casa.

— Um p-presente? — A sereia gaguejava, sua fala ficando ainda mais apressada — um presente… não, não, não, não posso aceitar… mas… e se…— ela mordeu o lábio inferior — O que você quer em troca?

Suspirei de alívio, ela queria mesmo os óculos e estava disposta a trocar.

— Quero apenas voltar para casa em segurança, senhorita sereia.

Após um breve momento de silêncio, ela respondeu:

— Só isso?!

A sereia franziu as sobrancelhas em profunda reflexão, poucos segundos depois, levantou seu olhar e exclamou com convicção:

— Chegar em casa é apenas o mínimo. Eu aceito seu presente, e além de voltar em segurança, você ainda tem direito a um pedido e… — ela hesitou, olhando ao redor e sussurrando — venha aqui rapidinho.

A sereia fez sinal para que eu me abaixasse na altura dela, obedeci.

— Você também tem direito… — seus lábios se comprimiram enquanto seu olhar seguia hesitante para a parte inferior do meu rosto — … a isso.

Ela selou nossos lábios em um beijo casto.

— Pronto.

Encarei-a de olhos arregalados, meu coração batia forte e ela não parecia muito mais calma, sua pele estava ainda mais azul e eu podia ver o jeito que ela tentava desviar o olhar. A sereia prosseguiu:

— E o seu desejo?

Fiquei um tempo olhando para ela de boca aberta até recobrar os sentidos.

— Eu… antes disso, senhorita sereia, qual o seu nome?

Foi a vez da sereia me encarar boquiaberta.

— Eu… eu me chamo… — ela parecia fazer certo esforço para falar, estava concentrada — É… Nur… Eu me chamo Nur.

Havia certa saudade em sua voz, como se não dissesse aquele nome em muitos anos. Uma pena, pois é um belo nome. Nur, a luz divina, como um farol que guia a nós, que vivemos do mar, de volta à segurança, irônico para ela.

— Eu me chamo Maria, é um prazer, Nur. — Sorri para ela e ela sorriu de volta, sem os dentes, imagino o porquê. — agora, sobre meu pedido…

O sol estava prestes nascer, já era hora de voltar.

— Eu quero que você esteja aqui quando eu voltar, esse é o meu pedido.

Eu morreria se nunca mais a visse, talvez tivesse ficado louca, apaixonada, talvez? Só os deuses poderiam saber, mas eu sabia, lá, bem no fundo, que aquele não poderia ser nosso último encontro.

Nur estava pasma, provavelmente pensando: “São todos os humanos estúpidos assim?” mas isso não importa, pois ela concordou.

O sol nasceu e nós nos despedimos. Ela cumpriu a promessa de me deixar voltar, afinal estou aqui contando essa história para você.

Já faz uma semana, confesso que tenho um pouco de medo de voltar para o mar, mas eu te digo, jovem, eu estava certa quando disse que enlouqueceria se não a visse de novo…

Hoje eu volto para lá… vou ver ela uma última vez.

O que vai acontecer comigo? Só os deuses sabem…

Mas se for para morrer, eu vou feliz, feliz porque pude conhecer a criatura mais singular de todas, uma sereia linda, e míope!

Contos bobinhos para passar o tempoOnde histórias criam vida. Descubra agora