Capítulo 4

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   Finney arriscou abrir os olhos. O ar os machucava e era como ver através de uma garrafa de Coca-Cola, tudo distorcido e com um tom improvável de verde, embora aquilo fosse uma melhora em relação a não ver absolutamente nada. O garoto estava sobre um colchão em um cômodo com paredes de gesso brancas que pareciam se curvar no topo e na base, fechando o mundo como um par de parênteses claros. Ele presumiu --- torceu --- que aquilo fosse apenas uma ilusão criada por seus olhos envenenados.
   Não conseguia ver o outro lado do cômodo, não conseguia enxergar a porta pela qual fora trazido. Podia muito bem estar debaixo d'água, observando as profundezas lodosas, um mergulhador na cabine de um transatlântico naufragado. À esquerda, havia um vaso sanitário sem assento. À direita, mais ou menos no meio do cômodo, havia uma caixa, ou um armário preto, presa à parede. No início, ele não conseguiu reconhecer o que era, não por causa da visão obstruída, mas porque era algo tão fora do comum, uma coisa que não deveria estar em uma cela de prisão.
   Um telefone. Um telefone preto, grande e antigo, com o fone pendurado no gancho ao lado.
   Al não o deixaria em um lugar com um telefone que não estivesse quebrado. Se funcionasse, um dos outros garotos teria usado. Finney tinha consciência disso, mas sentiu uma pontada de esperança mesmo assim, tão intensa que quase o fez chorar. Talvez ele tenha se recuperado mais rápido que os outros. Talvez, quando Al os matou, eles ainda não tivessem conseguido enxergar por causa do veneno de vespa e nem chegaram a ver o telefone. Ele franziu o rosto, chocado com a força daquele desejo. Porém, ao tentar ir na direção do objeto, tropeçou na ponta do colchão e caiu no chão. Seu queixo acertou o cimento. Um flash de escuridão piscou na frente de seu cérebro, bem atrás dos olhos.
   Ele se colocou de quatro, balançando a cabeça devagar de um lado para o outro, dormente por um instantes, mas depois se recuperando. Começou a engatinhar. Atravessou uma área comprida sem parecer chegar mais perto do telefone. Era como se tivesse em uma esteira que o levava para trás mesmo quando avançava com as mãos e os pés. Às vezes, ao apertar os olhos para ver o telefone, o objeto parecia estar respirando, as laterais inchando e depois indo para dentro. Finney teve que parar uma vez para descansar a testa quente no chão gelado. Era a única forma de fazer o cômodo parar de girar.
   Quando voltou a olhar, viu que o telefone estava logo acima dele. Finney se forçou a ficar de pé, agarrou o aparelho no instante em que ele ficou ao alcance e o usou para içar o corpo. O telefone não era exatamente uma antiguidade, mas com certeza era velho, com receptor e bucal, um par de campânulas prateadas, um martelinho entre elas, e um disco em teclas. Finney pegou o fone e o colocou na orelha, esperando pelo sinal de chamada. Nada. Empurrou o gancho para baixo e deixou ele voltar sozinho ao lugar. O telefone preto continuou em silêncio. Ligou para a telefonista. O fone fez clique-clique-clique no ouvido dele, mas não houve chamada do outro lado, nenhuma conexão.
   --- Não funciona --- disse Al --- Está quebrado desde que eu era garoto.
   Finney começou a dar meia-volta, mas então parou. Por alguma razão, não queria girar a cabeça e fazer contato visual com seu captor, e se permitiu apenas lhe lançar um olhar de soslaio. A porta estava perto o suficiente para ser vista, e Al se encontrava sob o batente.
   --- Desligue --- mandou ele, mas Finney continuou parado com o fone em uma das mãos. Depois de um instante, Al continuou: --- Sei que está com medo e que quer ir pra casa. Já vou levar você de volta para casa. Só que. . . fodeu tudo e preciso ficar lá em cima por um tempo. Aconteceu uma coisa.
   --- O quê?
   --- Não se preocupe
   Outra pontada de esperança horrível e inútil. Talvez fosse Poole --- o senhor velho sr. Poole vira Al o enfiando na van e chamara a polícia.
   --- Alguém viu algo? A polícia está vindo? Se me deixar ir, não vou contar para ninguém, não vou. . .
   --- Não --- respondeu o homem gordo, e deu uma risada seca e infeliz --- Não é a polícia.
   --- Mas tem alguém, não é? Tem alguém vindo?
   O sequestrador endireitou as costas, e os olhos próximos naquele rosto largo e feio ficaram preocupados e surpresos. Não falou nada, não precisava. A resposta que Finney queria estava naquele olhar, naquela linguagem corporal. Ou alguém estava a caminho. . . ou a pessoa já estava na casa, em algum lugar lá em cima.
   --- Eu vou gritar --- disse Finney --- Se tem alguém na casa, a pessoa vai me ouvir.
   --- Não, com a porta fechada, ele não vai escutar.
   --- Ele?
   O rosto de Al ficou vermelho, o sangue correndo para as bochechas. Finney observou suas mãos se fechando em punhos, depois se abrindo devagar.
   --- Quando a porta está fechada, não dá para ouvir nada aqui embaixo. --- Al assumiu um tom de calma forçada. --- Eu mesmo fiz o isolamento acústico. Então grite à vontade, não vai incomodar ninguém.
   --- Você que matou aqueles outros garotos.
   --- Não. Eu não. Foi outra pessoa. Não vou obrigar você a fazer nada do que não vá gostar.
   Alguma coisa na construção daquela frase --- 𝓝𝓪̃𝓸 𝓿𝓸𝓾 𝓸𝓫𝓻𝓲𝓰𝓪𝓻 𝓿𝓸𝓬𝓮̂ 𝓪 𝓯𝓪𝔃𝓮𝓻 𝓷𝓪𝓭𝓪 𝓭𝓮 𝓺𝓾𝓮 𝓷𝓪̃𝓸 𝓿𝓪́ 𝓰𝓸𝓼𝓽𝓪𝓻. --- deixou o rosto de Finney quente e seu corpo frio, marcado pelos arrepios.
   --- Se tentar encostar em mim, vou arranhar a sua cara, e quem quer que esteja vindo para cá vai ver e perguntar o que aconteceu.
   Al o encarou com o olhar vazio por um instante, absorvendo a frase, e então respondeu:
   --- Pode desligar o telefone agora.
   Finney apoiou o fone de volta no gancho.
   --- Uma vez, eu estava aqui e ele tocou --- disse Al --- Foi assustador. Acho que por causa da eletricidade estática. Tocou bem quando eu estava do lado dele, e eu atendi sem pensar, sabe, para ver se havia alguém na linha.
   Finney não queria bater papo com uma pessoa que tinha a intenção de matá-lo na primeira oportunidade possível e foi pego de surpresa quando abriu a boca e ouviu a própria voz fazendo uma pergunta.
   --- E havia?
   --- Não. Está quebrado, eu não falei?
   A porta foi aberta e fechada. No segundo em que ficou entreaberta, o enorme desajeitado homem gordo saiu, pulando nos dedos dos pés --- um hipopótamo dançando balé ---, e desapareceu antes que Finney pudesse abrir a boca para gritar.

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