Capítulo 7

73 6 0
                                    

   Quando as câimbras reapareceram, no fim do seu terceiro dia no porão, ele precisou se sentar no colchão listrado para esperar elas passarem. Era como se alguém tivesse enfiado um espeto pelo seu corpo e o girasse devagar. Cerrou os molares até sentir gosto de sangue.
   Mais tarde, Finney bebeu a água da caixa de descarga do vaso sanitário e ficou lá, de joelhos, para analisar os parafusos e os canos. Não sabia por que não tinha pensado naquilo antes. Tentou desenroscar uma porca de ferro de quase oito centímetros de diâmetro até as mãos ficarem esfoladas, mas a peça estava coberta de ferrugem e ele não conseguiu movê-la.
   Tinha acordado de supetão, a luz entrando pela janela do lado oeste do cômodo, um raio de sol brilhante e amarelado cheio de granulado cintilante da poeira. Ficou assustado por não conseguir se lembrar que tinha se deitado no colchão para descansar. Era difícil unir um pensamento no outro, raciocinar a sequência das coisas. Mesmo depois de ficar dez minutos acordado, sentia que havia acabado de despertar, tonto e desorientado.
   Por um bom tempo, ele não conseguiu se levantar e ficou sentado com os braços em volta do peito enquanto a última luz do dia desaparecia e as sombras se erguiam ao seu redor. Às vezes, era acometido por um ataque de tremedeira, tão forte, que Deus dentes batiam. Podia estar frio, mas seria a pior noite. Não achava que aguentaria outra madrugada tão gelada quanto a última. Talvez aquele fosse o plano de Al. Tirar sua chance de revidar com o frio e a fome. Ou pode ser que não houvesse plano nenhum, talvez o homem gordo tivesse tido um infarto fulminante, e era assim que Finney ia morrer, um minuto congelante por vez. O telefone voltara a respirar. Finney olhou para ele, observou suas laterais inflando, retornando e inflando de novo.
   --- Pare com isso --- mandou o garoto.
   Ele parou.
   Finney caminhou. Precisava fazer isso para permanecer aquecido. A lua nasceu e, por um tempo, iluminou o telefone preto com sua luz esbranquiçada. O rosto de Finney queimava e sua respiração condensava, como se ele fosse mais demônio que menino.
   Não conseguia sentir os pés. Estavam frios demais. Pisou forte tentando trazê-los de volta à vida. Fechou as mãos. Os dedos estavam gelados, furos, e era doloroso movê-los. Ouviu um cantarolar desafinado e percebeu que era ele mesmo. O tempo e os pensamentos surgiam de repente, em ondas. Tropeçou em alguma coisa no chão e então voltou, tateando com as mãos, tentando entender entender o que fizera cair, se era algo que poderia ser usado como arma. Não conseguiu encontrar nada e, por fim, admitiu que tropeçara no próprio pé. Repousou a cabeça no cimento e fechou os olhos.
   Acordou ao som do telefone tocando de novo. Sentou-se e olhou para o aparelho, do outro lado do cômodo. A janela que dava para o leste exibia um pálido tom prateado de azul. Estava tentando decidir se ele tinha tocado de verdade ou apenas sonhara com ele tocando, quando o telefone tocou pela segunda vez, um ruído alto e metálico.
   Finney se levantou e esperou o chão parar de oscilar sob seus pés; era como andar em um colchão d'água. O telefone tocou pela terceira vez, o martelinho batendo nas campânulas. A realidade abrisava daquele som teve o efeito de clarear sua mente, de fazê-lo voltar a si mesmo.
   Ele pegou o fone e colocou no ouvido.
   --- Alô?
   Ouviu o chiado, semelhante à neve caindo, da estática.
   --- John --- disse o garoto do outro lado da linha. A conexão era tão fraca que a ligação poderia estar sendo feita do outro lado do mundo. --- Escuta, John. Vai ser hoje.
   --- Quem está falando?
   --- Não lembro o meu nome --- respondeu o garoto --- É a primeira coisa que você perde.
   --- A primeira coisa que você perde depois do quê?
   --- Você sabe do quê.
   Finney achou que reconhecia aquela voz, mesmo que ele tivessem se falado apenas uma única vez.
   --- Bruce? Bruce Yamada?
   --- Quem sabe? --- falou o garoto --- Mas isso importa?
   --- O que vai ser hoje? --- perguntou.
   --- Estou ligando para dizer que ele deixou uma coisa que você pode usar para enfrentá-lo.
   --- Que coisa?
   --- Você está segurando ela.
   Finney girou a cabeça e encarou o fone na mão. Do receptor, que não estava mais grudado no seu ouvido, ouviu o zumbido distante da estática e o som baixo do menino morto falando alguma coisa.
   --- Como é? --- disse Finney, colocando o fone de volta na orelha.
   --- Areia --- falou Bruce Yamada --- Deixe mais pesado. Não é pesado o bastante. Entendeu?
   --- O telefone tocou para um dos outros garotos?
   --- Não pergunte por quem o telefone toca --- respondeu Bruce, com uma risadinha infantil. Então falou: --- Nenhum de nós escutou. Ele ficou, mas nenhum de nós ouviu. Só você. A pessoa tem que ficar aqui por um tempo antes de aprender a ouvi-lo. Você foi o único que durou tanto. Ele matou os outros antes que pudessem se recuperar, mas não pode matar você, não pode nem descer aqui. O irmão dele fica a noite inteira na sala fazendo ligações. O irmão dele é um viciado em cocaína que nunca dorme. Albert odeia isso, mas não pode mandar o cara embora.
   --- Bruce? Você está aí mesmo ou estou ficando maluco?
   --- Albert também escuta o telefone --- falou Bruce, como se Finney não tivesse dito nada. --- Às vezes, quando ele está aqui no porão, a gente passa uns trotes nele.
   --- Eu me sinto fraco o tempo todo e não sei se consigo lutar assim.
   --- Você vai. Você joga sujo. Fico feliz por ser você. Sabe, ela encontrou mesmo os balões, John. Susannah.
   --- Encontrou?
   --- Pergunte a ela quando chegar em casa.
  Então, um clique. Finney esperou pelo sinal de chamada, mas não havia nada.

O Telefone PretoOnde histórias criam vida. Descubra agora