Capítulo único

1.7K 86 65
                                    

- Eu preciso falar com você.

Stênio estava diferente. Seu rosto estava mais magro, um pouco caído, os olhos baixos. Continuava lindo, mas à beira da exaustão. Sua voz estava rouca, seu tom de voz já não era doce e contente ao olhar para ela. Claro, tinha seu presente em mãos, porque nunca se cansaria de agradá-la, mas seus olhos mais gritavam por socorro e colo, do que por risadas, provocações e taças de vinho.

- Ah, não. Não precisa falar comigo porque a gente já falou tudo que tinha pra falar ontem, ouvi todos os seus argumentos e não mudei de ideia. E eu quero que você saiba que eu não mudei uma vírgula do que eu penso a seu respeito e a respeito do que você fez. 

Heloísa cuspiu as palavras com velocidade, sem tropeçar a língua. A dicção ao rebatê-lo era tão perfeita, que parecia que ensaiava as suas falas durante a tarde toda para respondê-lo à noite. E talvez fosse isso mesmo: Helô vivia repetindo suas defesas para si mesma, todo santo dia, para conseguir lidar com as sensações que tomavam seu corpo toda vez que ele se aproximava.

Na noite anterior, ela estava bem mais furiosa. Ele chegou com flores bonitas, mas com o mesmo tom de voz rouco e sério desta noite. Discutiram muito. Ela explodia com a sua raiva e fazia questão de apontar para ele uma imoralidade que enxergava nos argumentos usados para defender e soltar bandidos como o Moretti. Ele suspirava e tentava contornar. Era o seu trabalho, oras. E ele amava exercer a profissão dele tanto quanto ela amava exercer a profissão dela. Eram iguais e, ao mesmo tempo, opostos.

Só que no fundo, fundo mesmo, ele sabia que ela tinha razão. Ele sabia que tinha misturado a vida profissional com a vida pessoal ao aceitar defender o Moretti. E esse erro foi tão prejudicial, que não só usou toda a sua malemolência para livrá-lo de seu comportamento rebelde e imprudente, como tinha ele mesmo cometido crimes para fazerem as coisas darem certo. E não deram. 

Triste, ele quis compreender até onde poderia chegar naquela visita, e perguntou suave:

- Não vai nem olhar o chocolate?

Ela puxou a caixa, raivosa:

- E vou comer. 

Uma resposta ávida, grossa. Mas não tanto a ponto de expulsá-lo sem chances de diálogo. Ali, nas minúcias da sua reação, estava uma mísera esperança de que tudo ficaria bem entre eles. Com provocações e mágoas sendo jogadas na cara? Sim, mas isso já era tão comum que poderia até dizer que fazia parte de sua personalidade.

E além disso, a mulher mais inteligente daquela trama toda também enxergava a exaustão dele em se emaranhar num caso que não queria estar defendendo. Helô sabia que Stênio não fazia aquilo com a malícia de seus clientes, e sim com a paixão pelo argumento.

Sabia também que era impossível que a raiva pelas atitudes profissionais superasse o amor que reacendia no seu peito a cada semana, quando ele aparecia com mais uma lembrança de seus tempos de casados, um presente nostálgico e um jeitinho de sentir o seu cheiro no canto do seu pescoço.

Eles estavam construindo, desde o Natal, uma relação íntima e prazerosa, em que se permitiam se amar de novo. Não conversavam sobre isso, é claro. Até para que a racionalidade da delegada não acabasse com esses momentos singulares em que ficavam presos no próprio mundo. 

Quando estavam a sós, dançavam, se abraçavam, se cheiravam, se beijavam. Desbravavam cada centímetro que tinham saudade do corpo do outro. Não era preciso que palavras fossem ditas para que soubessem que se pertenciam e mereciam viver aquela paixão que guardavam em si. 

Era um pesadelo não poder gritar aos quatro ventos que estavam juntos, porque logo em seguida, viriam mais brigas e separações. Então, enquanto ainda não sabiam o que fazer para dar certo de vez, ficavam ali, a sós, no que podiam desfrutar sem serem atrapalhados por alguém. Naquela atmosfera paralisante onde a delegada e o advogado criminalista não existiam. Ali, eram apenas Heloísa e Stênio. Dois adultos que se amavam há mais de trinta anos.

ExaustãoOnde histórias criam vida. Descubra agora