Prologo

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Seus olhos refletidos no espelho eram obscuros pelas horas que passou chorando, eram visíveis os bolsões das olheiras abaixo dos olhos violetas dando um contraste com os lábios ressecados. No espelho algumas gotas de sangue escorriam com um aspecto gosmento, indicativo que não eram pertencentes a um humano, ainda que continuasse com a coloração rubra já normativa.

O corpo da garotinha tremulava em espasmos constantes que iam de medo a exaustão, tinha corrido muito para chegar aquele porão imundo, aquele espelho era a única coisa que podia recorrer, ninguém a escutava gritar por ajuda, as luzes estavam acessas pelas ruas, mas nenhuma porta estava aberta, as lareiras acessas e aquecidas, mas nenhuma oferecia conforto.

Sua família não era bem vista no bairro, na cidade, sussurravam boatos cruéis que impediam qualquer um de oferecer a mão

-Mamãe foi levada por eles- A voz baixa, cheia de dor e desespero- Ela me pediu para se esconder...

A visão do espelho que antes refletia a garotinha ondulou como agua e moldou-se em um homem de pele cinzenta e cartola com adornos prateados destacando o preto da peca, o corpo agachado era maior que a pequenina a frente.

-Vai atrás dela? Porque se for disso que veio tratar comigo, devo informar que não possuo...

-Quero refugio, por favor!!

As mãos rachadas e machucadas com resquícios de sangramentos nas unhas tocaram a superfície do espelho, salpicando algumas partes desta vez com o seu próprio sangue, o silencio que se fez com o pedido não foi quebrado nem mesmo com as lagrimas que desciam lentamente pelo rosto, aquilo não era um pedido, era uma suplica, vinda de uma criança vitima da crueldade humana.

De joelhos e olhos vermelhos chorosos, a cena não era bonita de ser presenciada, era na verdade humilhante se fosse levada em conta, mas ela não tinha culpa de tudo que aconteceu.

-Minha mãe olhou nos meus olhos uma ultima vez e mandou eu me esconder, sobreviver, então por favor, me ajude a cumprir a ultima ordem dela.

Ao invés de responder, o homem do espelho olhou para o colar de raposa que balançava junto com os movimentos do corpo miúdo, raposas nem sempre eram vistas com bons olhos, já que poderia representar traições e persuasões para tendências erradas.

Isso era diferente para a tradição de onde sua família vinha, as raposas eram vistas como símbolo de inteligência e audácia, tal como "cativa-me", vinha de um povo forte, mas adorável e gentil, ainda que quase extintos.

Talvez nem todos estejam preparados para cativar uma raposa

-E sua herança cultural? Se vier comigo em sinal de refugio terá que abdicar de tudo que um dia chamou de seu.

Não era pressão, era apenas um aviso para que não sentisse o amargor do arrependimento contagiar seu paladar, pior do que não pertencer a lugar nenhum e se arrepender de ter abandonado o conforto de um dia pertencer.

-Renuncio ao meu eu, ao sangue que corre nas minhas veias, as roupas e andar que um dia pertenceram a meu povo, que por agora não são mais meus.

A voz tremulava vez ou outra, mas nenhuma palavra que se soltou de sua garganta era falsa, ela cumpriria a ordem que a mãe deu.

-Renuncia também seu espirito guardião que leva contigo no pescoço?

As mãos que estavam no espelho foram de encontro ao pingente segurando com forca, aquilo parecia ser a única fonte de calor do porão, era a ultima coisa que sua a fazia sentir o conforto da mãe.

-Re-Renuncio.

Aquele foi o único momento de hesitação entre as muitas palavras ditas com "confiança", e nem mesmo o homem de cartola poderia julga-la por isso. Então com um impulso, ele se levantou fazendo a cartola cair pela sala obscura do outro lado do espelho e espalhar o som dos pingentinhos batendo entre si, a mão esquerda foi estendida além do espelho se materializando na frente da menina que desta vez não pensou muito ao segura-la.

-Já que possui tanta certeza do que almeja, segure minha mão e venha comigo.

A mão estendida tinha um leve cheiro de baunilha, o que era agradável para a pequena, e deu para sentir o quão quente ela era em comparação a sua que estava gelada pela umidade do lugar, aos poucos ela foi sendo puxada para dentro do espelho sentindo as ondulações parecendo entrar em uma grande lagoa gelada na madrugada.

Sua pele foi ficando alaranjada e criando longos pelos, seu nariz se alongou junto de sua boca e os olhos afinaram ampliando a visão do lugar que começava a se abrir para ela, o corpo que ja era miúdo diminuiu um pouco mais.

O homem soltou o que antes era uma mão de criança, e se agachou lentamente captando o chapéu caído no processo, olhando desta vez para uma raposa ao invés de uma menina ele sorriu de forma carinhosa e acariciou a cabeça de leve segurando em seguida o colar que ainda estava preso no pescoço do animal como uma coleira.

Ele sabia que aquilo aconteceria, guardiões como as raposas não abandonam seus protegidos mesmo quando estes renunciam seu sangue, marcas de espirito são mais fortes que a sanguíneas. A menina também deveria ter suposto que isso aconteceria, mas não ficou com medo mesmo com a atual forma, estava pacifica, calma.

Com um longo suspiro, se levantou e adentrou o mundo conhecido como paralelo dos espelhos, sendo desta vez acompanhado pela raposa.

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Beleza!!
Olha eu vou tentar desenhar como imagino o colar, porque duvido que eu ache um semelhante kk
Enfim
Obrigada por ler
Bjs 💙

O conto de uma raposa perdidaOnde histórias criam vida. Descubra agora