Prólogo

46 1 0
                                    

- Eu vou atrás de você até o inferno, Wolde - Sidonia Von Borcke sussurrava baixo, atrás da cigana.

As duas andavam o pequeno trajeto entre a igreja e o espetáculo que havia se instalado em meio à praça: um tronco de árvore estava erguido em meio à pedaços de madeira seca e feno. Acorrentadas uma à outra pelos pulsos e pés, Wolde seguia à frente, tendo que praticamente arrastar a velha duquesa atrás de si. Haviam lhes dado banho e tratado de suas feridas, mas não era o suficiente para aplacar sua dor. Lá estava o Duque Otto Von Borcke junto de sua esposa e filhos legítimos, pronto para assistir à execução de sua própria mãe e da mãe de sua filha bastarda. O brilho de dor em seus olhos só era visível para quem o conhecia bem, mas a fachada era impassível. Era como se sequer conhecesse as duas mulheres ali. Wolde sabia o que ele pensava, podia senti-lo. A confusão era maior que qualquer outro sentimento, mas bem no fundo de sua alma sentia-se traído. Todos esses anos fora enganado pelas duas, vivia sob o mesmo teto que uma bruxa e havia se apaixonado por outra. E todas as atrocidades a que elas haviam sido condenadas, sequer ousava pensar. Ainda assim amava a ambas, mas tinha medo.

- Meu filho! Me tire daqui agora! - Sidonia gritava - eles estão cometendo um erro! A bruxa é Wolde! A bruxa mente! - o desespero era palpável em sua voz.

Ele relanceou um olhar para mãe e depois fitou Wolde. Ela segurou seu olhar como em desafio. Você vai nos deixar queimar, covarde? Pensava, raivosa.

As duas foram amarradas juntas ao poste no meio da fogueira. Sidonia tremia, e o cheiro de urina invadiu as narinas de Wolde. Todos os expectadores começaram a rir. Todos eles tinham aquele olhar de ansiedade e excitação, esperando pela morte brutal de duas mulheres. Olhar para seus rostos deixou Wolde nauseada. Sidonia gemia baixinho todos os feitiços existentes na tentativa de convocar os espíritos ancestrais. Não funcionaria daquela vez.

E então o Duque Von Borcke tomou sua posição ao lado do reverendo e limpou a garganta.

- É com muito pesar que hoje descobrimos a existência de bruxas diabólicas dentre nosso bondoso povo - sua voz falseava, em sinal de sua confusão interna.

Wolde conseguia vê-lo de perfil, o nariz reto, as sobrancelhas grossas, os cílios grandes e curvados e aquela boca de lábios finos e sempre tão amorosos. Mal podia acreditar nas palavras que agora saiam daqueles lábios.

- NÃAAAAAAAAAO - Sidonia gritava, em desespero.

- .... e nos reunimos aqui em praça pública para expurgar o mal que ousou pisar em nossas terras - continuava.

- Não - Wolde se viu dizendo - Não! Você não pode! - gritou mais alto, por sobre os gritos de desespero da duquesa.

- .... seremos implacáveis na caça a todos aqueles que tenham relações com o oculto...

- Você precisa proteger nossa filha! - as lágrimas desciam copiosamente por seu rosto inchado e dolorido. Aquela traição calava fundo.

Von Borcke se interrompeu abruptamente e lançou um olhar de desespero para Wolde. Me perdoe, ele formou as palavras com os lábios sem emitir nenhum som. Viu seus olhos encherem-se de lágrimas.

- Condenamos Sidonia Von Borcke e Wolde Albrechts por assassinato de 7 crianças inocentes, uso de poções mágicas para seduzir homens, e por manterem relações sexuais com o Diabo. Acendam a fogueira - disse por fim, com a voz embargada.

Uma dúzia de mãos ávidas se aproximavam do feno com tochas em mãos. As labaredas começaram a crescer em uma velocidade rápida, ajudadas pelo vento. De mãos dadas com a mulher que mais odiava no mundo, Wolde sentia seu peito explodir em cólera. Não, aquele não seria o fim. Não deixaria o mundo sem antes destruir a vida daqueles que a assassinavam e assassinariam sua filhinha.

Sentia a ira da duquesa fluindo de seu corpo. Agarrou a mão da velha com mais força e canalizou seu ódio, cantando o que seria seu ultimo ato de magia negra. O fogo agora lambia suas pernas, e a dor era insuportável. Sidonia gritava com horror, balbuciando frases desconexas.

- Eu vou atrás de você até o inferno, cigana! - gritava - Eu vou te perseguir e te matar quantas vezes forem necessárias!

- morderen drej beskytteren, at menesket igen ulv. Morderen drej beskytteren, at menesket igen ulv - repetia as palavras, sua voz aumentando um pouco a cada vez. - Morderen drej beskytteren, at menesket igen ulv! - gritou, por fim, sua voz mais alta do que a voz humana poderia ser. Os gritos de alegria de todos os expectadores de repente silenciaram. Eles sabiam que algo estava errado e começaram a gritar de dor, curvando-se no chão enquanto os barulho de ossos quebrando se fazia ouvir. Antes de deixar-se levar pela dor e pela morte, Wolde pensou que agora tudo ficaria bem. Sua filha seria protegida pelo próprio pai, sua família inteira seria protegida por aquele vilarejo. Todos aqueles assassinos se curvariam diante dos que queimariam naquela mesma fogueira. Abriu seus olhos pela ultima vez e sorriu para as centenas de olhos que a fitavam. Cada um deles, carregando em si o fogo que agora a consumia; cada par de olhos, um demônio com o qual um feiticeiro jamais se deitaria.

OS Feiticeiros Elementais - Livro I: AquaOnde histórias criam vida. Descubra agora