Nem todos os dias eram ruins.
Às vezes, Deodora acordava com algum sentido em sua vida. Levava sua rotina adiante. Na maioria, porém, mal conseguia levantar da cama. Preferia parar de existir do que continuar a reviver tudo o que fez. Trocaria de lugar com o filho se isso o trouxesse de volta. Se sentia como se estivesse se afogando em um oceano escuro, sem uma luz para guiá-la. Sem quem lhe era mais importante. Porque ela o matou.
Pajeú deixava as coisas um pouco melhores.
Ele a visitava sempre que podia, pelo menos uma vez por semana. Normalmente, trazia algum desenho ou presente de Cirino, e ela fazia questão de guardar tudo com cuidado. Eles conversavam muito - Pajeú lhe atualizava sobre Canta Pedra, desde a eleição de Xaviera até o enterro do jegue Shop Cênti, que, aparentemente, causou uma comoção geral na cidade. Com o tempo, Deodora passou a se abrir com Pajeú, aprendendo a deixar as mentiras de lado e a ser ela mesma perto dele. Não tinha mais orgulho nenhum a perder. Ele sempre foi o único que ficou do seu lado. Que a amou de verdade. Confiava nele. Pajeú a ajudava, a tirava das espirais de luto naquelas visitas curtas. Ele lhe dava uma motivação mínima para não desistir, ainda que sua alma gritasse por um fim. Por paz.
Fazia três anos desde que Tertulinho se foi. Mesmo tendo sido poderosa em Canta Pedra, ela pegou a pena máxima - não era ninguém na capital. E merecia isso. Afinal, foi completamente por sua causa. Tinha ido longe demais com a história de matar Zé Paulino e Candoca, cega de ódio e ambição. O desespero de se livrar deles subiu à cabeça e nem imaginou que o plano dos chás envenenados poderia dar errado. O seu erro lhe custou caro: seu filho, a pessoa que mais amava no mundo, por quem sempre moveu montanhas. Com os anos, ela se acostumou com o constante sentimento de perda. Do vazio que era um filho morrer antes da mãe, e da culpa de ela ter sido quem cometeu o crime. Tertulinho poderia ter sido muito feliz se ela não tivesse se intrometido em sua vida, a certeza disso a machucava. A dor que sentia todo dia nunca diminuiria, mas aprendeu a lidar com ela. Aprendeu a conviver com o luto.
Realmente, ela deveria estar passando por algo muito pior do que a cadeia. De qualquer jeito, nenhum lugar para onde fosse chegaria perto do que guardava em seu coração. Talvez fosse por isso que nem sabia direito se queria sair dali e encarar a realidade.
Hoje era o dia de sua liberação. Ainda que parecesse uma eternidade e não aguentasse mais ficar ali, não achava que tivesse passado tempo suficiente - mesmo que não tivesse passado um único dia dos últimos três anos sem se arrepender diariamente do que fez. Agora, já usando as roupas com as quais chegara naquele presídio, Deodora encarava os portões abertos, se preparando para o que iria enfrentar. Respirou fundo, ergueu a cabeça e caminhou pela saída.
Finalmente fora do confinamento, o abafado do verão a atingia. Estava livre. Mesmo assim, ainda se sentia presa. Talvez fosse ser desse jeito para sempre. Olhando para o céu, ela se questionava o que faria a partir de agora, quando escutou uma voz atrás de si. "Dona Deodora!"
Ela mal teve tempo de se virar, quase caindo para trás com um abraço de Cirino, que chegou correndo. "Oi, meu lindo, que saudade! Mas como tu tá grande!" Deodora o abraçou de volta, uma tristeza súbita dominando o seu coração. O menino era muito parecido com Tertulinho mais novo, ainda tinha tanto pela frente. Tanto que ela poderia ter tido. Ela piscou algumas vezes e sorriu, antes que uma ou duas lágrimas ameaçassem cair. "Tu não deve nem lembrar mais de mim, né?"
Ele negou com a cabeça - Cirino adorava Deodora, nunca esqueceria dela. "Painho fala da senhora quase todo dia."
Deodora ergueu o olhar, vendo Pajeú se aproximar dos dois. "E é, é?" Ela fez cócegas em Cirino, que riu e fugiu para perto do pai. Então, ela se voltou para o ex-jagunço com uma expressão confusa.