Capítulo único

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Os dias cinzas sempre me deram um ar de tristeza. Acho que isso é culpa da minha avó. Ela adorava dias ensolarados e quentes, e eu era um pouco assim também. No início, eu tentava a todo custo contrariá-la, mas eu precisei me render, até porque percebi que ela tinha razão. Os dias de sol me faziam sorrir, era algo inexplicável.

Mas hoje o dia começou com aquela garoa chata de São Paulo que geralmente permanece por dias a fio. É o que minha avó chamava de chuva-de-molha-bobo, porque os pingos são muito finos, mas a longo prazo, você fica todo molhado. E afinal, qual seria o ponto de sair com essa pseudo-chuva lá fora? Se minha melhor amiga não estivesse vindo me visitar, eu ficaria na cama o dia inteiro.

Fazia muito tempo que não encontrava Carolina. Anos, na verdade. Desde que ela se mudou para o Canadá, ficou impossível manter a nossa reunião mensal com o grupo de amigos. Mas esse sempre foi o sonho da vida dela, então quem sou eu pra julgar? Nós nos conhecemos na faculdade e, desde que nos aproximamos, ela falava sobre isso.

O que ela nem sonhava é que eu já tinha começado a procurar passagens para daqui a alguns meses, porque eu decidi que gostaria de visitá-la. Eu nunca fui para fora do Brasil, então qual oportunidade seria melhor que esta? Que bom que eu sou boa em guardar segredos! Mas ela estava chegando e eu queria levá-la num lugar que conheci não faz muito tempo.

Ela era apaixonada por café e, andando por aí sem rumo nas ruas da capital paulista, descobri a portinha minúscula que se encontra a cafeteria quartiere, que significa vizinhança em italiano. Bem, nada melhor que juntar as duas coisas, certo? Afinal, os italianos são conhecidos por produzirem um dos melhores cafés do mundo.

Carol me enviou uma mensagem, disse que o avião acabou de pousar. Graças a isso, me levantei finalmente. Peguei meus dois gatos e os abracei fortemente, fazendo-os miar de indignação. Não acredito que ainda não se acostumaram, já que eu faço isso todos os dias. É impossível passar por eles e não abraçar aquelas pancinhas gordas. Mas a minha rinite me julgou desde o primeiro dia.

Comecei a tomar banho e lembrei da última vez que vi Carol. Eu namorava uma menina que, na época, achava que era o amor da minha vida. Minha melhor amiga sempre me chamou de "lésbica emocionada" por causa disso. Mas poxa, eu não estava errada em querer aproveitar a vida ao máximo. Inclusive, fazia um mês que eu estava conversando com outra moça e queria acreditar que havia uma mínima chance de evoluir.

Depois da água ter me dado mais energia, peguei algumas lembrancinhas que havia comprado durante esses anos e as embrulhei em um pacote só. Tinha de tudo ali: ímãs de geladeira de cidades que visitei, um bloco de notas e canetas do artista favorito dela, chaveiros com saca rolhas e abridores de garrafas. Enfim, todas essas bugigangas que ela adorava.

Eu estava muito ansiosa. Queria saber de tudo, nos mínimos detalhes. Claro, nós nos falávamos um pouco todos os dias, mas era sempre diferente quando estávamos frente a frente. E eu tenho certeza que ela também perguntaria muito sobre a minha vida, porque é isso que nós fazemos quando estamos juntas.

A segunda mensagem chegou mais rápido do que eu poderia imaginar. Ela disse que conseguiu um Uber bem rápido e já estava a caminho da minha casa. Com a escova entre os dentes, me apressei para organizar tudo. Minha barriga já estava roncando, então seria bom que ela chegasse logo!

Felizmente, eu morava relativamente perto do aeroporto, então acreditei que em menos de 30 minutos ela estaria tocando o meu interfone. Mal vi o tempo passar pois me concentrei em arrumar o quarto que ela vai ficar, e então, o toque alto do aparelho ressoou no apartamento, fazendo meus bichos olharem para mim com desgosto. Como eu ousaria atrapalhar a soneca deles, não é mesmo?

Abri o portão após apertar alguns botões e destravei a porta, deixando-a entreaberta para que Carol chegasse gritando, como era de costume. Assim que ela apareceu saindo do elevador, consegui ver sua mochila preta com listras roxas e brancas, o coturno marrom e a calça xadrez, sua marca registrada. Depois ainda vi uma mala enorme e fiquei me perguntando o porquê daquilo, já que ela só ficaria uma semana.

Assim como eu, ela chegou apertando meus gatos. Que bom que eles são super sociáveis, mas eles devem repensar essa decisão seriamente algumas vezes no dia. Finalmente abracei minha melhor amiga depois de anos, senti como se o tempo praticamente não tivesse passado. Estávamos mais velhas e com algumas rugas começando a querer aparecer, mas ao mesmo tempo, era como se estivéssemos nos vendo pela primeira vez novamente.

— Carol, esse corte de cabelo ficou incrível! Combinou muito com você!

— Eu sei! E só de pensar que você me falou tantas vezes sobre isso e eu fui teimosa demais para não acreditar.

E eu realmente falei. Para ser mais específica, eu trouxe esse tema à tona por dois anos inteiros da faculdade, e vale lembrar que vários dos nossos amigos disseram a mesma coisa. Mas é aquilo: antes tarde do que mais tarde.

Enquanto eu ajudava ela a se estabelecer no quarto, já avisei que sairíamos para tomar café. Ao mesmo tempo, a chuva apertou e nos deu um pouco mais de preguiça, mas trato é trato. Ela colocou uma roupa mais aconchegante e nos preparamos para andar algumas quadras. Peguei meu guarda-chuva de bolinhas, eu o chamo de Genius 4º, porque todos os outros já quebraram.

Carol tinha o dela, que se chamava guarda-chuva mesmo. Ela tinha uma política de não dar nomes a objetos inanimados, o que percebe-se que eu sou totalmente contra. Ainda não falei sobre o Joseph, o aspirador robô que comprei. A duas quadras do meu prédio, minha amiga começou com uma de suas manias.

— Você sempre faz isso!

— Como assim?

— Estica sua mão para fora quando está chovendo!

— Sim, me acalma um pouco, sabe. Gosto de sentir as gotas tocando a minha mão e escorrendo até o chão.

Carol tem muitas manias estranhas, e apesar de essa ser uma delas, eu gosto muito de observar como as pequenas coisas também são capazes de fazê-la feliz. Quando chegamos ao local, um pouco ensopadas pela chuva molha-bobo, nos guiei até a mesa do canto, que já deveria ter o meu nome ali. Dona Márcia, ao me ver, chegou distribuindo sorrisos.

Apresentei minha melhor amiga à garçonete do café e elas se deram super bem. Sinceramente, não conheço uma pessoa que não goste daquela senhorinha de 63 anos. Ela me contou que se aposentou do cargo de gerente de banco após uma doença grave, mas que ela sempre quis tentar ser garçonete e essa estava sendo a melhor experiência.

Indiquei à Carol o melhor café que eu já havia provado e, pela primeira vez, ela aceitou uma sugestão minha sem pestanejar. Escolhi outro que achava muito bom e batemos papo enquanto isso. Ela disse que estava trabalhando em uma empresa super chique voltada para os animais. Ela fazia a comunicação externa. E também adotou dois gatos, e como a mãe morava perto, os deixou com ela para poder vir ao Brasil.

Depois de Dona Márcia ter trazido os pedidos, saboreei o café com toque de avelã e comecei a contar sobre a nova moça que estava paquerando, mas não quis dizer todos os detalhes. Afinal, quem estava com a vida diferente era Carol. A minha continuava praticamente a mesma coisa desde quando saímos da faculdade.

Era engraçado quando eu parava realmente para pensar em tudo o que tinha acontecido comigo, o que não era muita coisa. Mas aqui estava eu, com quase 30 anos nas costas, um emprego estável, psicologicamente e fisicamente bem, conseguindo me sustentar com meu próprio dinheiro... até que não estava tão ruim quanto eu pensava.

Mas eu sentia falta da Carol. Éramos melhores amigas há 10 anos e fazia 4 que ela havia se mudado. Pensei como era estranho não vê-la todo mês, até porque tínhamos tanto para contar uma à outra que só funcionaria cara a cara. Mas ela parecia feliz, e eu estava feliz por ela também.

Apesar de tudo, eu sabia que a semana passaria super rápido e sentia que não seríamos capazes de colocar todas as fofocas em dia, mas me inspirei em Vinicius de Moraes e recitei internamente parte do soneto de fidelidade. E que seja infinito enquanto dure. 

Algumas quadras de chuva em São PauloOnde histórias criam vida. Descubra agora