5 - O Crime

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O dia seguinte era treze de junho. Não passava de nove e meia
quando vieram informar que o Inspetor Japp estava no andar térreo,
ansioso por falar conosco. Fazia alguns anos que não tínhamos notícia do
detetive da Scotland Yard.
— Ah! Ce bon Japp — disse Poirot. — Que será que ele quer?
— Auxílio — retruquei logo. — Anda desnorteado com algum caso e
correu atrás de você.
Não nutria por Japp a mesma indulgência de Poirot. Não tanto por me
importar com a exploração intelectual que fazia de meu amigo. Afinal de
contas, Poirot gostava desse procedimento, implicava numa lisonja sutil. O
que me aborrecia era a hipocrisia do inspetor, fingindo não ter a menor
intenção nesse sentido. Eu simpatizava com pessoas que não andassem
com rodeios. E assim disse. Poirot soltou uma gargalhada.
— Puxa, que fera que você é, hem Hastings? Mas convém não
esquecer que o pobre Japp precisa salvar as aparências. Por isso deve
dissimular um pouco. E muito natural.
Continuei achando uma rematada tolice e não hesitei em proclamar.
Poirot discordou.
— As aparências... são uma coisa insignificante... porém importante
pros outros. Permite-lhes conservar o amour propre.
A meu ver, um certo complexo de inferioridade não faria nenhum mal
a Japp, porém julguei inútil insistir no assunto. Estava, aliás, ansioso em
saber o que viera fazer ali.
Cumprimentou-nos efusivamente.
— Pelo que vejo, cheguei na hora do café. Ainda não conseguiu
galinhas que botem ovos quadrados, M. Poirot?
Era uma alusão à velha queixa de Poirot em relação aos diversos
tamanhos de ovos que lhe ofendiam o senso de simetria.
— Ainda não — respondeu, sorrindo. — E que o traz cá em hora tão
matinal, meu bom Japp?
— Nem é tão cedo assim... pelo menos pra mim. Já faz umas boas
duas horas que ando trabalhando. Quanto ao assunto que me traz, bem, é
um crime.
— Um crime?
Japp assentiu.
— Lord Edgware foi morto em sua casa, em Regent Gate, ontem à
noite. Apunhalado na nuca, pela esposa.
— Pela esposa? — exclamei.Num relâmpago, lembrei as palavras de Bryan Martin na manhã
precedente. Teria ele tido uma premonição profética do que ia suceder?
Lembrei, também, a referência frívola de Jane a “dar cabo dele”. Amoral,
Bryan Martin a definira. Ela era desse tipo, sim. Insensível, egoísta e
obtusa. Como acertara em seu julgamento.
Tudo isso me passou pela idéia enquanto Japp prosseguia.
— Sim. Uma atriz, sabe? Famosa. Jane Wilkinson. Casou com ele há
três anos. Não se entendiam. Ela o abandonou.
Poirot parecia intrigado e sério.
— Por que é que você crê que foi ela quem o matou?
— Não sou eu quem crê. Foi reconhecida. Nem se deu o trabalho de
dissimular. Chegou de taxi...
— De taxi... — ecoei, sem querer, recordando suas palavras no Savoy
aquela noite.
— Tocou a campainha, perguntou por Lord Edgware. Eram dez horas.
O mordomo disse que ia ver. “Oh!” fez ela, fria como gelo. “Não é preciso.
Sou Lady Edgware. Presumo que ele esteja na biblioteca.” E com essa ela
passa adiante, abre a porta, entra e fecha de novo. Ora, o mordomo achou
aquilo meio esquisito, mas deixou o barco correr. Tornou a descer a escada.
Cerca de dez minutos mais tarde, ouviu a porta da frente bater. De modo
que, seja como for, ela não se demorou muito. O mordomo trancou o
ferrolho por volta das onze. Abriu a porta da biblioteca, mas estava escuro e
por isso supôs que o patrão tivesse ido dormir. Hoje de manhã, a camareira
encontrou o cadáver. Esfaqueado na nuca, bem na raiz do cabelo.
— Não houve gritos? Ninguém escutou nada?
— Dizem que não. Aquela biblioteca tem portas à prova dc som,
sabem? E havia o barulho do trânsito, também. Esfaqueado desse jeito, a
morte sobrevém com rapidez assombrosa. Direto na cavidade, até a
medula, foi o que o médico disse... ou algo semelhante. Quando se acerta
no lugar exato, mata instantaneamente.
— Isso pressupõe um conhecimento quase cirúrgico.
— Sim... tem razão. Um ponto a favor dela, nesse caso. Mas é quase
certo que foi por acaso. Acertou por pura sorte. Certas pessoas têm uma
sorte prodigiosa, sabe?
— Nem tanta assim, se terminam enforcadas, mon ami —observou
Poirot.
— Não. Claro, ela foi uma idiota... apresentando-se desse jeito, com
nome e tudo.
— Muito curioso, de fato.
— Talvez não pretendesse fazer nada de mal. Brigaram, ela puxou um
canivete e cravou nele.
— Foi canivete?
— Algo parecido, segundo o médico. Seja lá o que for, ela levou junto
consigo. Não estava no ferimento.
Poirot sacudiu a cabeça como se estivesse insatisfeito.
— Não, não, meu caro, não foi assim. Conheço a mulher. Seria
totalmente incapaz de uma ação tão ardente e impulsiva que nem essa.Ademais, é muito improvável que andasse com um canivete. Poucas
mulheres andam... e Jane Wilkinson certamente não figura nesse numero.
— Quer dizer então que o senhor a conhece, M. Poirot?
— Conheço, sim.
Por um instante calou-se. Japp ficou olhando-o com curiosidade.
— Algum trunfo escondido, M. Poirot? — arriscou, finalmente.
— Ah! — fez Poirot. — Isso me lembra. O que o trouxe aqui? Hã? Não
se trata meramente de passar o dia com um velho camarada? Claro que
não. Tem nas mãos um esplêndido crime sem mistérios. Descobriu a
criminosa. Sabe o motivo. A propósito, qual é mesmo o motivo?
— Queria casar com outro. Ouviram quando falou isso uma semana
atrás. Sabe-se também que fez ameaças. Disse que pretendia tomar um
táxi, ir até a casa e dar cabo dele.
— Ah! — exclamou Poirot. — Está muito bem informado... muito bem
informado. Alguém se mostrou muito prestativo.
Julguei ler uma pergunta em seus olhos; mas, mesmo assim, Japp
não respondeu.
— Nós costumamos ouvir coisas, M. Poirot — disse ele, impassível.
Poirot assentiu. Estendera a mão para o jornal do dia. Tinha sido
aberto por Japp, sem dúvida enquanto estivera esperando, e depois atirado
impacientemente a um canto do vestíbulo. Num gesto maquinal, Poirot
dobrou-o de novo na página central, alisando-o em ordem. Apesar de estar
com os olhos no jornal, tinha o espírito imerso numa espécie de quebra-
cabeça.
— Você não me respondeu — disse por fim. — Já que tudo corre de
vento em popa, por que veio à minha procura?
— Porque soube que o senhor esteve em Regent Gate ontem de
manhã.
— Ah.
— Ora, logo que soube disso, disse comigo mesmo: “Aqui tem coisa”.
Sua Excelência mandou chamar M. Poirot. Por quê? De que desconfiava? O
que temia? Antes de tomar qualquer providência definitiva, seria bom que
eu fosse até lá e tivesse uma palavrinha com ele.
— O que é que entende por “providência definitiva”? Prender a
mulher, imagino?
— Exatamente.
— Ainda não falou com ela?
— Ah, falei sim. A primeira coisa que fiz foi ir ao Savoy. Não quis
correr o risco de deixá-la escapar.
— Oh! — exclamou Poirot. — Então você...
Parou. Seus olhos, que até então fitavam pensativos, sem ler, o jornal
à sua frente, de repente adquiriram uma expressão diferente. Ergueu a
cabeça e falou num novo tom de voz.
— E o que foi que ela disse? Hem, meu amigo? O que foi que ela
disse?
— Fiz o que se faz habitualmente, lógico, pedindo-lhe uma explicação
e advertindo-a. Ninguém pode dizer que a polícia inglesa não seja justa.— Na minha opinião, da maneira mais tola. Porém continue. Que
disse ela?
— Ficou histérica... palavra. Corria de um lado pro outro, com os
braços aos céus e finalmente caiu estatelada no chão. Ah! Foi uma cena e
tanto... quanto a isso não há dúvida. Uma bela representação.
— Ah! — comentou Poirot com brandura. — Deduziu, então, que a
histeria não era verdadeira?
Japp piscou o olho com vulgaridade.
— O que é que o senhor acha? Não me deixo levar por esses truques.
Ela não desmaiou... imagine só! Estava apenas me experimentando. Sou
capaz de jurar que se divertiu às minhas custas.
— Sim — retrucou Poirot, pensativo. — Eu diria que é bem possível. E
depois?
— Oh! Ora, ela chegou a... fingiu, quero dizer. E chorou e gemeu, sem
parar; e aquela criada azeda intoxicava-a de sais aromáticos; até que enfim
se recuperou o suficiente pra mandar chamar o advogado. Não diria coisa
alguma sem a presença dele. Uma hora histeria, outra o advogado, eu lhe
pergunto, isso é lá um comportamento natural?
— Nesse caso, perfeitamente natural, a meu ver — respondeu Poirot
com toda a calma.
— Quer dizer, porque ela é culpada e sabe disso.
— De modo algum. Quero dizer em virtude do seu temperamento.
Primeiro ela lhe oferece sua concepção de como o papel de uma esposa que
recebe subitamente a notícia da morte do marido deve ser interpretado.
Depois, satisfeito o instinto bistriônico, sua astúcia inata pede pra chamar
o advogado. Só por criar uma cena artificial e se divertir com o fato não
quer dizer que seja culpada. Apenas indica que é uma atriz nata.
— Mas não pode estar inocente. Isso é certo.
— Você é muito positivo — replicou Poirot. — Vai ver que tem razão.
Ela não fez nenhuma declaração, segundo diz? Absolutamente nenhuma?
Japp sorriu.
— Não quis dizer uma palavra longe do advogado. A criada telefonou
pra ele. Deixei dois agentes lá e vim até aqui. Julguei aconselhável tomar
todas as precauções antes de dar um passo decisivo.
— E mesmo assim está plenamente seguro?
— Claro que estou. Mas gosto de recolher o maior número possível de
fatos. Vai haver um grande estardalhaço com tudo. Nada desse negócio de
segredo. Todos os jornais estarão cheios disso. E sabe como a imprensa é.
— Por falar em jornais — disse Poirot, — como se explica isto, meu
caro amigo? Acho que você não leu com bastante atenção.
Curvou-se sobre a mesa, com o dedo num parágrafo das notas
sociais. Japp leu-o em voz alta.
— Sir Montagu Corner ofereceu um jantar muito concorrido ontem à
noite em sua residência à beira-rio em Chiswick. Entre os presentes
figuravam Sir George e Lady du Fisse, o famoso crítico teatral Mr. James
Blunt, Sir Oscar Hammerfeldt dos Estúdios Cinematográficos Overton, Miss
Jane Wilkinson (Lady Edgware) e outros.Por um momento Japp pareceu aturdido. Mas em seguida se refez.
— Que diferença faz? Este troço foi enviado à impressão com
antecedência. Espere e verá. No fim a nossa madame não compareceu ou
então chegou atrasada... lá pelas onze horas. Pelo amor de Deus, não vá
tomar ao pé da letra tudo o que os jornais publicam. O senhor, melhor do
que ninguém, devia saber disso.
— Oh! Eu sei, eu sei. Só que me pareceu estranho, mais nada.
— Essas coincidências de fato acontecem. Agora, M. Poirot, aprendi, à
custa de duras provas, que o senhor é capaz de guardar um segredo tão
bem quanto um túmulo. Mas irá colaborar comigo, não? Vai me dizer por
que Lord Edgware mandou chamá-lo, não vai?
Poirot sacudiu a cabeça.
— Lord Edgware não me mandou chamar. Fui eu que pedi uma hora
marcada pra falar com ele.
— É mesmo? E por que motivo?
Poirot hesitou um pouco.
— Vou responder a pergunta — disse lentamente, — mas gostaria de
fazê-lo à minha maneira.
Japp soltou um suspiro. Senti uma secreta simpatia por ele. Poirot,
quando quer, sabe ser extremamente irritante.
— Peço-lhe licença —- continuou Poirot, — pra telefonar a uma certa
pessoa e pedir que venha até cá.
— Que pessoa?
— Mr. Bryan Martin.
— O artista de cinema? Que tem ele a ver com isto?
— Acho que perceberá que o que ele tem a dizer lhe interessa... e
provavelmente lhe sirva de auxilio. Hastings, quer ter a bondade?
Peguei a lista telefônica. O apartamento do ator ficava num grande
bloco residencial perto do Parque St. James.
— Victoria 49499.
Após alguns instantes, a voz um tanto sonolenta de Bryan Martin
atendeu.
— Alô... quem fala?
— O que é que eu digo? — sussurrei, cobrindo o fone com a mão.
— Diga-lhe — disse Poirot, — que Lord Edgware foi assassinado e que
eu lhe peço o favor de vir até aqui pra falar imediatamente comigo.
Repeti o recado. Houve uma exclamação de espanto do outro lado da
linha.
— Meu Deus — respondeu Martin. — Então ela cumpriu a palavra,
hem! Vou em seguida.
— O que foi que ele disse? — perguntou Poirot.
Contei tudo.
— Ah! — fez Poirot, parecendo contente. — Então ela cumpriu a
palavra, hem! Foi isso que ele disse? Tal como eu imaginava; tal como eu
imaginava.
Japp olhou-o com curiosidade.
— Não entendo o senhor, M. Poirot. Primeiro fala como se a mulherfosse absolutamente incapaz de cometer o crime. E agora dá a entender que
sabia de tudo desde o início.
Poirot se limitou a sorrir.

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