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"Corre, porra, corre! Ele vai te alcançar Arthur, você só precisa correr, só precisa correr! MERDA!"

Um rugido estridente reverberou pela floresta. As garras da enorme criatura, formada pela pura energia da morte, atingiram a face assustada de Arthur Cervero. Inconsciente, o moreno caiu, e as palavras de Joui Jouki ecoaram, desconexas, em sua cabeça.

...

Ele despertou de mais um de seus muitos pesadelos costumeiros. Olhou-se no espelho, passando a ponta dos dedos sob as profundas cicatrizes presentes em seu rosto. Arthur nunca soube de onde elas vieram - mas preferia pensar que talvez fosse alguma marca bizarra de nascença. O mesmo pensamento aplicava-se ao seu braço: possuía apenas o direito, então acreditava ter nascido assim. Não tinha como ter certeza, afinal, Arthur sequer sabia quem eram seus pais biológicos.

As ruas de São Paulo eram sempre movimentadas, especialmente numa manhã de segunda-feira. O estridente som das buzinas dos carros em meio ao trânsito já soavam como pássaros cantando aos ouvidos de Arthur. Sentia falta da tranquilidade de sua terra natal, mas adaptou-se ao caos que era SP e, se voltasse para Santa Catarina, o silêncio tornaria-se mais ensurdecedor que o barulho.

Arthur odiava a monotonia. E viu na capital uma oportunidade de finalmente crescer como músico.

Ele jurava ter tido uma banda, talvez, na adolescência, mas não existem registros dela. Agora, estava no auge dos 32 com várias tatuagens pelo corpo esguio - muitas das quais ele não se lembrava de quando, como, onde e porquê fez - barbado, um pouco mais alto e com um olhar cansado. Buscava ter a mesma disposição jovial e, por isso, persistiu na carreira musical. Arthur já tivera outros empregos antes, mas todos em escritórios cheios-de-rotina demais para ele.

Estava em busca de outra banda - precisava de uma banda. Tocar com um único braço não era uma tarefa simples, então decidiu aprender a cantar, mas... não, definitivamente não era o que ele gostava. Aliás, por que ele tinha uma guitarra? E por que sentia que sabia tocá-la? Ele já não nascera sem o braço esquerdo?

Arthur tinha poucas lembranças de sua infância e adolescência. Lembrava-se de uma mulher de cabelos e olhos intensamente castanhos o chamando para jantar, mas também de uma mulher grisalha e rosto pálido o abraçando forte em um momento de... luto? Mas, diferente da primeira, ainda tinha contato com esta, considerando - a uma mãe.

As peças não se encaixavam. Estavam todas embaralhadas em sua mente. Talvez fosse o momento de procurar um psicólogo.

Ele pegou as chaves do carro e deu partida pelas ruas da grande capital, sem se importar muito com o visual - vestia uma jaqueta de couro sob uma regata dos Misfits, uma jeans rasgada e tênis all star preto. Seu cabelo estava arrumadamente desarrumado, e ele completou com um óculos de sol, só para não perder o costume.

Arthur seguiu a 60 por hora até o primeiro consultório médico que encontrou em uma das muitas avenidas daquela cidade. Até que uma fachada verde bebê e branco, com um letreiro em dourado escrito "NatuLab" lhe chamou a atenção.

De fato, o rapaz nunca pensou que procuraria um psicólogo. Sempre achou que pudesse se virar sozinho, ignorando as lembranças ruins e descontando seus sentimentos na música. Mas ele estava piorando, cada vez mais, e no fundo, sabia que precisava de ajuda.

A rádio que tocava Seek And Destroy do Metallica foi interrompida quando Arthur virou as chaves do carro para descer. Ele respirou fundo, bateu a porta e andou vagarosamente até a entrada.

Ele definitivamente odiava hospitais.

Toda aquela burocracia de pegar uma senha, esperar ser atendido, para depois esperar novamente em outra sala para só então ser chamado pelo doutor era extremamente cansativo para ele.

— Senha 84 — despertou ao ouvir uma voz feminina chamar. Depois de quase trinta minutos, era sua vez.

— Ah, oi, bom dia, eu queria saber se vocês tem psicólogo aqui — Arthur estava tão ansioso que suava frio e gaguejava algumas palavras.

— Sim, senhor. Você possui convênio?

Arthur demorou alguns segundos para responder. O que diabos era um convênio?

— Ah... eu... — coçou a nuca, inquieto — acho que não?

— Poderia emprestar seu documento por gentileza? — respondeu a moça de cabelos escuros, com um tom paciente.

— Sim, claro — Arthur levantou-se e procurou desesperadamente pelo seu RG nos bolsos da calça, depois na capinha do celular. Nada. — Moça, eu acho que eu esqueci no carro, você espera um minutinho?

— Sem problemas, só não demore muito. — a mulher parecia querer matá-lo, mas sabia que seria demitida se esboçasse qualquer reação de raiva, então apenas disfarçou com um sorriso singelo.

Arthur saiu em disparada em direção ao carro e só então percebeu que suas mãos estavam trêmulas e que ele suava frio. Nisso, acabou não percebendo que outra pessoa estava entrando no consultório e esbarrou nela. Quando olhou para cima, engoliu seco.

Um homem, cerca de 1,80 de altura, pele branca quase pálida e traços asiáticos o encarou de cima a baixo.

— Você não olha por onde anda, não? — resmungou o mais alto.

— D-desculpa, eu 'tava indo pegar meu documento no carro, a moça tá com pressa, eu... — quando observou melhor o rosto do homem, Arthur notou algo que lhe trouxe mais memórias: uma cicatriz em forma de X em sua bochecha.

"Corre, porra, corre! Ele vai te alcançar Arthur, você só precisa correr, só precisa correr! MERDA!"

— Oi? Alô? Caralho, mas você vive no mundo da Lua, OII! — Arthur despertou quando o rapaz o chacoalhou pela terceira vez.

— Perdão, eu... acho que te conheço de algum lugar. — respondeu o moreno, confuso.

— Impossível. Eu cheguei no Brasil faz pouco tempo, mal sei falar português.

— Você já parece fluente. Sério, seu português é ótimo. Ah, prazer, me chamo Arthur — sentindo-se levemente culpado, o mais baixo estendeu sua mão, na tentativa de amenizar o clima ruim.

Arthur fora correspondido, não com um aperto de mãos, mas com uma saudação que ele julgou familiar. O mais alto cruzou os braços sob o peito e curvou-se levemente para o moreno.

— Joui Jouki.

Arthur sabia que o conhecia de algum lugar. Mas, de onde?

...

— Arthur Cervero - uma voz aveludada e masculina ecoou sob o consultório quase vazio. Arthur prontamente se levantou e ouviu um "boa sorte" de Joui, que também esperava para ser atendido.

Novamente, o moreno começou a tremer. Inspirou e expirou três vezes seguidas e finalmente adentrou o consultório, encostando a porta.

Mais memórias.

Um homem loiro, pálido e magro, com várias tatuagens visíveis no pescoço, braços e testa ajustou seu pequeno óculos acima do nariz e fitou os olhos mistos de Arthur, que estremeceu.

"Você quer que eu trate seus ferimentos?"

— Bom dia, Arthur. Eu sou o doutor Dante e vou dar início ao seu tratamento.

apocalypse || danthurOnde histórias criam vida. Descubra agora