༼ 𝐓𝐄𝐎𝐑 𝐏𝐎𝐄𝐓𝐈𝐂𝐎 ༽ 𝑝𝑜𝑒𝑠𝑖𝑎 𝑒 𝑐𝑜𝑛𝑡𝑜𝑠

𝐓𝐄𝐎𝐑 𝐏𝐎𝐄𝐓𝐈𝐂𝐎

ele me deixou,
e tudo em meu corpo parou.
mas então o cheiro fresco de chuva
e o vento gelado entrando pela janela
abraçaram os meus pulmões
e eu voltei a respirar.

o som dos pingos fustigando o parapeito consolou meus ouvidos
e eu aprendi que as coisas que ele me disse não eram as únicas
que se valia a pena escutar.

e o céu de outono constituído de tons de violeta
piscou para a mim e me seduziu até a janela.
e eu entendi que ele não era
a coisa mais linda ou poética que eu já vira
depois que parei de admirá-lo
para admirar a minha janela
e o resto do mundo.

o pôr do sol rosáceo recorta o formato da janela na parede de ladrilho,
tinge meu corpo inteiro em tons de pêssego com cerejas
antes de eu entrar na banheira
e a água morna engolfar meu corpo.
há uma taça na cadeira ao lado da banheira
cheia de lágrimas cintilando,
e elas cintilam porque têm teor.
teor de tristeza,
teor de estro,
teor de raiva,
teor amor.

eu bebo um gole da taça
e mergulho na água.
sinto meus átomos se desprenderem do meu corpo
e se diluírem nela.
cato galhos e folhas de era-venenosa que vão emergindo
conforme a água me drena os traumas.
abelhas e borboletas entram pela janela
para pousarem na minha pele e tomarem da água,
pois mel verte de mim
conforme a água depura os meus amores.
elas me deixam flocos de pólen de presente
e eles flutuam ao meu redor feito ninfeias.
e agora essa água tem teor,
teor de veneno,
e teor de açúcar.

e eu sei que isso parece loucura,
que analogias às vezes podem parecer tão sem sentido
quanto os passos de um ébrio,
mas só não as entendem quem não está inebriado.
e eu me sinto inebriada
de amor
de raiva
de desgosto
e de estro.
e o frenesi que me toma não vem do teor alcoólico
pois não é vinho nessa garrafa ao lado da banheira,
são lágrimas
e sangue
e leite de flores
com todo o seu teor
me afogando
e inebriando
e me lavando a alma
até que todo o trauma se vá pelo ralo
e só restem pétalas boiando na água
dessa banheira
com teor poético.