Digestão ruim

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Ouvi dizer que o luto por gente viva é um processo irracional, embora vívido.

O despertador - sobre o móvel ao lado da cabeceira da cama - ainda não tocou, e eu ainda não dormi. Mas a hora do meu trabalho de merda se aproxima. São 5:43.

Ótimo que não dormi. Detestaria acordar a essa hora.

Ao lado do despertador está ela. A grande companheira da minha frustração e do meu luto por gente viva.

Soa Jorge Vercilo em algum lugar da minha mente:

"Ela une todas as coisas. Como eu poderia explicar? Um doce mistério de rio, com a transparência de um mar..."

Ouço a porta do meu quarto bater, interrompendo minha música mental:

_ Seu Piazzo? Já acordou? Estou fazendo café pro senhor.

Era a dona Rosana. Uma vizinha fofa que tem a chave da minha casa, e volta e meia cuida de mim e do meu gato, o Botija. Não me atrevo a chama-la de empregada - embora eu a compense financeiramente em tudo que ela necessita e a pensão por morte não cobre.

Ela perdeu o filho há alguns anos, surtou e foi aposentada por invalidez. Acredito que ela usa esse cuidado comigo e com o Botija para preencher o vazio que havia naquele coração grandioso e maternal. Acho que os psicólogos chamam isso de "projetar", mas não tenho certeza. Enfim, ela é carinhosa e não considera trabalho o que faz por nós. Por mim e pelo Botijinha. Mas eu considero e procuro suster ela em suas necessidades.

_ Bom dia, Dona Rosana - grito, rouco e inseguro -, estou acordado sim. Já vou me levantar. Obrigado pelo café.

_ Ah, tudo bem, seu Piazzo. Graças a Deus. O Bolinho estava sem água (ela insiste em chamar o Botija de "bolinho", até parei de corrigir), então já troquei. Fiz aquela goiabada com queijo que o senhor adora pro café da manhã. Agora eu preciso ir. Vou pegar o ônibus pra paróquia. Volte no horário do almoço. Farei uma galinha escaldada com quiabinho. Talvez a gente possa almoçar juntos.

_ Dona Rosana, eu já disse que te amo hoje? - grito de dentro do quarto - É claro que vamos almoçar juntos. Muito obrigado por tudo que faz por mim e pelo Botija. A Senhora é uma... Rainha.

Pensei em chama-la de mãe. Mas seria um vacilo homérico com Dona Rosana, dado o histórico.

_ O senhor não precisa dizer que me ama, Seu Piazzo. É um doido varrido, mas seu coração é bom por demais. Obrigada. Nos vemos no almoço então.

Ouvi a porta bater.

Ainda bem que ela não me viu nesse estado. Não viu o estado do quarto. Ela entraria em desespero. Há roupas em todos os móveis, sapatos, papéis, bitucas de cigarro. As únicas coisas minimamente organizadas são minha cama e a mesinha de cabeceira onde ela está. Lá está ela. Ao lado do despertador e da fiel companheira colher. E do isqueiro.

Jorge Vercilo volta a tocar na rádio mental.

"Ela está em todas as coisas, até no vazio que me dá, quando vejo a tarde cair e ela não está. Talvez ela saiba de cor tudo que eu preciso sentir, pedra preciosa de olhar. Ela só precisa existir...

...Para me completar".

Começo a pensar nas 3 gotinhas novamente. As mesmas que me fizeram virar a madrugada, envolto de papéis.

E eis que escuto o Botija miando lá fora, arranhando a porta, e recobro a consciência.

A VIDA NÃO PODE SER SÓ ISSO.

Finalmente tomo vergonha na cara e me levanto da cama. Tudo dói. Meus poderes foram embora, e eu já não sou mais o Super Piazzo.

Apenas o Piazzo fracassado de sempre, com ressaca, lombalgia e vergonha de si mesmo, andando com a mão na lombar até a porta.

Quando abro, lá está ele. A doçura dos meus dias. O gatinho malhado mais educado do mundo, roçando na minha canela enquanto ronrona.

Pego ele no colo, dou beijo e choro. Copiosamente. O despertador toca.

Tá na hora de ir pra Redação da revista.

Me dou conta do quanto sou cercado diariamente de amor. Pela Dona Rosana. E pelo Botija.

Então porque sendo tão amado por vidas, eu insisto em amar essas malditas 3 gotas destrutivas na mesa de cabeceira? Por que as vezes deixo o Botija de lado por essa colher?

PIAZZO, VOCÊ É UM MERDA! UM FRACASSO EM LUTO POR GENTE VIVA! SEMPRE ENTORPECIDO. SUJO. IMORAL.

A consciência soa mais alto que o Jorge Vercilo enquanto tomo banho, chorando copiosamente feito um bebezão. Botija mia do lado de fora do banheiro. O bichinho parece sentir meu sofrimento. Ele merecia um dono melhor. Ele merecia a Dona Rosana. Beata religiosa, maternal, fofa. E ele tem a mim. Esse lixo de pessoa.

Desculpa, Botija. Eu te amo mais do que a mim mesmo, figurinha.

Termino o banho e me arrumo.

Passo pela cozinha e vejo, dentro de uma vasilha em formato de coração, a goiabada com queijo que Dona Rosana preparou com amor pra mim.

Mas minha digestão está ruim e eu faço ânsia de vômito. Pobre Dona Rosana. Vou levar um pedaço pra Lisboa, do RH. Assim, Dona Rosana vai pensar que eu comi e vai ficar feliz.

Me sinto um fracasso de novo.

É hora de ir pro trabalho.

Foco, Piazzo! Você tem uma redação pra gerir.

Talvez isso seja tudo que você tenha. Fazer dinheiro pra cuidar do Botija e da Rosana. Já que você ESCOLHEU a miséria e a infelicidade mesmo sendo bem sucedido de grana.

A consciência é uma vadia. Saudades do Jorge Vercilo descrevendo minha relação doentia com as três gotas.

Enfim, vamos ao trabalho. Mais um dia cinza me aguarda. Tá nublado lá fora.

Que Deus nos ajude...

Continua no próximo capítulo.

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