A caminho da redação da revista, fiquei me perguntando se havia trancado a casa.
Uma noite virada de farra tem seus custos.
O John Coltrane na rádio me acalma no trânsito para o trabalho. Já sabia que chegaria atrasado, mas estava levando o pote em forma de coração com a goiabada com queijo que Dona Rosana fez pra mim. Minha intenção é dar pra Lisboa.
Ah, a Lisboa do RH!
Não sei se existe amor a primeira vista, mas tesão... Lisboa me fez ter certeza que existe. Ela me atrai fortemente.
Ela é uma mulher de corpo normal, cabelos castanhos normais, sempre presos, e está sempre de terninho e saia. O que é incrível nela é o rosto! Ela me lembra a Natalie Portman, que é simplesmente a atriz mais linda que já vi na vida.
Claro que o nome dela não é Lisboa. A questão é que ninguém sabe o nome dela na nossa redação.
É que o RH é da editora inteira, não só da nossa revista. E o crachá dos funcionários do RH só tem o sobrenome.
Antes dela chegar, o chefe de RH era o Cavalcanti. Mas todos sabiam que o primeiro nome dele era Miguel. Miguel Cavalcanti.
Acontece que ele se aposentou, e ele era um dos poucos que respeitava a nossa revista. Na editora, a nossa revista esportiva é mal vista por todas as outras. Céus, até a revista de moda e a de carros têm mais simpatia conquistada que a nossa.
Nosso histórico de arrumar problemas com jogadores de futebol nos deixou com má fama dentro da editora. O jurídico nos odeia, o setor de notícias nos abomina e o pessoal das relações públicas que simplesmente acabar com a revista.
O dono gosta, e é o que nos mantém lá, apesar da pressão dos acionistas minoritários. E é aí que entra o RH, que semanalmente demite um de nós e contrata outro mais alinhado com a editora.
O problema é que eu sou um dos três redatores sênior, e temos um redator chefe. Nós quatro gostamos de como escrevemos. Fazemos uma revista provocadora e investigativa, sem bajular clubes de futebol e jogadores. Colocamos o dedo na ferida. E não somos fáceis de demitir.
Por isso, a Lisboa nos despreza. Nos nega o primeiro nome. O Cavalcanti nos adorava, mas a Lisboa nos repele.
E é isso que me deixa excitado nela. Além da postura séria, as unhas sempre em tons terrosos, porém com brilho, a delicada pulseira dourada pendendo de seu colarinho no braço esquerdo, a forma como ela digita naquele teclado. Tudo nela é belo, gracioso, diferente.
Parece paixão? Mas o que fazer se eu imagino ela me dando tapa na cara, me cavalgando em alguma salinha do almoxarifado, com aquele olhar de desprezo, aquelas unhas arranhando meu peito e me enforcando, enquanto pede "mete" sussurrando baixinho? Queria pegar ela com aquele terninho e aquela saia.
Pois é. Provavelmente nunca vai acontecer.
Cheguei na editora, e lá estava ela. Dessa vez o terninho e a saia eram cinzas, com uma camisa social branca. Impecável. As unhas brilhantes cor de café. O batom tinha um tom parecido com o das unhas. Um delineado fino e discreto margeava seus olhos cor de mel.
Céus, tudo nela parece calculado.
Munido do pote, vou até sua sala, bato a porta de vidro transparente. Ela, sem olhar, compenetrada com uma resma inteira de papéis, fez apenas um gesto com o indicador, me convidando a entrar.
- Bom dia, Lisboa. Como está nessa manhã agradável?
- Bom dia, Piazzo - respondeu ainda com os olhos fixos na maldita resma. Tudo bem que o desprezo dela me excita, mas as vezes me deixa puto também. Ela não pode ser gentil nunca? - O que o traz aqui? - Perguntou com o desdém de quem caga cheiroso.
- Bem... Lhe trouxe essa Goiabada com Queijo. Você gosta?
- Adoro! - pela primeira vez a vi esboçar uma reação com a voz levemente alterada. - Pode deixar na minha mesa, por favor?
- Claro! - respondi, depositando à mesa dela o pote em formato de coração.Quando ia saindo da sala, ela me interrompeu:
- Piazzo?
- Sim? - me virei pra ela.
- Muito obrigada. - pela primeira vez essa mulher dirigiu um olhar e um sorriso simultaneamente pra mim.Fiquei tão sem ação que apenas sorri e assenti com a cabeça, como quem diz "disponha" silenciosamente.
Meu dia começava bem. Não me lembro de um dia em que estivesse tão animado naquela redação. Me sentia um adolescente.
Fui observar a linha editorial e analisar o que meus subalternos andavam escrevendo.
Era difícil manter nossa revista coesa dentro da proposta que tínhamos, de colocar o dedo na ferida do futebol brasileiro e denunciar as falcatruas em que vários clubes, presidentes, empresários, árbitros, técnicos, entre outros, estavam envolvidos.
Cada vez que demitem um profissional competente, colocam a primeira merda que encontram no LinkedIn com diploma de jornalismo. Gente que nem gosta de esporte vem parar aqui por causa dos nossos inimigos internos nessa editora.
E o que acontece? Nós treinamos, ensinamos os caras, eles levam tempo pra aprender, ficam craques e... São demitidos. A sabotagem da editora contra a nossa redação nunca tem fim.
Curiosamente, somos a revista esportiva que MAIS VENDE no país. Mas a pressão de dirigentes, políticos e até alguns jogadores milionários, os processos judiciais... Isso pesa tanto na imagem da editora que eles esquecem os lucros exorbitantes que nós proporcionamos.
Me reuni com os outros redatores sênior e o redator chefe por volta das nove da manhã. Discutimos formas de blindar os nossos funcionários da sabotagem e das demissões quase semanais.
- O trabalho da revista Bola Dentro vai colocar justiça no futebol desse país. Nosso sonho não pode ser tesourado assim - disse Carlos, o mais inflamado de todos nós.
- É, mas aquela matéria denunciando estupro no vestiário daquele maldito time pegou muito mal pra gente. - ponderou Almir.
- O que acha, Piazzo? - disse Carlos, como quem procura aprovação.
- Que eles se danem! Eles demitem nossos repórteres e editores e mandam esses trouxas pra cá, a gente treina eles e é isso. Não vão nos calar nunca. - respondi.
- Mas essas demissões precisam parar. - Persistiu Carlos.
- Nós precisamos conversar com o patrão. Só ele acredita no nosso trabalho. Caso contrário, vai continuar do jeito que está. Essa patacoada! - respondi, resignado e sem acreditar que alguém de fato nos ajudaria.
- Bem, vamos tentar agendar. Encerramos por hoje essa reunião? - perguntou Afonso, o redator chefe. Confirmamos com a cabeça.Não havia mais o que dizer. Era sempre o mesmo problema. Ademais, havia muito trabalho a fazer. Eu tinha uma matéria em curso, denunciando uma suposta manipulação de resultados no campeonato brasileiro.
Enfim, chega o horário de almoço. Fui pra casa animado com a galinha escaldada que Dona Rosana faria pra gente.
Quando cheguei em casa, havia algo de estranho na entrada. A porta parecia ter sido arrombada.
Quando entro, dou de cara com dona Rosana, de cabeça baixa no sofá, chorando copiosamente.
- Dona Rosana? O que aconteceu?
Ela me olhou com pesar e ainda chorando. Sem dizer nada, me entregou uma carta.
Ainda confuso e sem entender, comecei a ler.
"Sr. Luigi Piazzo,
Eu sabia que chegaria o dia em que eu faria você sofrer.
Me levou tempo. Afinal, sua família mora em Turim. Com essa economia, fica inviável viajar até a Itália em nome de uma vingança. Precisei usar de criatividade.
A sua família está longe. E um canalha filho da puta como você não tem amigo nenhum no mundo. Mas, enfim, cheguei a uma conclusão de como faria você se arrepender do que fez comigo.
Vá pensando aí em qual das pessoas pode estar te deixando essa carta. Você fodeu com a carreira de tantas, não é mesmo?
Mas seja rápido, o tempo está passando. Eu estou no aguardo. E o que EXIJO é um pedido de desculpas público em sua revistinha de merda.
Descubra quem sou eu. A bola está em jogo, e está com você.
Cadê seu gato, Piazzo?
Se desculpe publicamente! E rápido! Só assim o verá novamente."
CONTINUA NO PRÓXIMO CAPÍTULO
VOCÊ ESTÁ LENDO
Devaneio
Mystery / ThrillerSeria um devaneio? Será verdade? Seriam meus olhos injetados? Será uma ressaca? Importa o que seria ou o que será? Essa história é muito sobre o que É. Ou sobre o que pode - ou parece - ser. Piazzo é o redator de uma revista esportiva. Mas sua vid...