Sempre me perguntei o que acontece com as pessoas quando morremos. Minha mãe jura de pé junto que descansamos até o juízo final, outros acreditam que trabalhamos no mundo espiritual mas eu acho que nos tornamos a natureza, nos tornamos as ondas, o adubo, o vento forte, essas coisas sabe?
Uma vez sonhei que eu e minhas primas nos tornavamos aves, jamais me pergunte qual o sentido desse sonho, na maioria das vezes meu sonho não tem nenhum sentido. Mas enfim, nesse meu sonho me tornava um Carcará, isso mesmo, um Carcará e pra quem não conhece se trata de uma ave de rapina nativa de boa parte do Brasil.
É engraçado pensar nisso, porque antes de eu me mudar pra Conchinha eu sempre via Carcarás onde morava. Todo dia quando ia pegar o ônibus em direção a escola via alguns deles na berada da estrada ou voando pelo céus. Meu pai chamava minha avó de velha Carcará, eles se davam bem demais pra genro e sogra, sinto falta dela mas gosto de acreditar que os Carcarás que vem ao meu encontro são a mais pura representação dela.
A expectativa de vida de um Carcará é de cerca de 15 anos, o que é bem irônico porque essa era a idade que eu tinha quando minha avó morreu. Perde-lá para o câncer não foi fácil pra ninguém da nossa família.
Por mais que já sabíamos que as chances eram mínimas e já estávamos nos preparando para a sua partida, todos nós ainda tinhamos aquela esperança de que ela se recuperaria.
Alguns anos depois da morte dela eu me mudei pro litoral, sempre quis morar no litoral, sentia que era o que eu precisava pra me conhecer melhor. Conheci pessoas legais, tenho um emprego legal na reserva florestal, faço faculdade de biologia e tenho uma vida de caiçara ótima por aqui.
Era uma manhã de sexta-feira, por volta das 08:00 acordei, me arrumei, tomei café e fui de ônibus pra sede da reserva. O dia estava nublado, chuviscando um pouco, a medida que o ônibus subia a serra era perceptível a presença de neblina que se condensava dentre as árvores criando assim, um clima agradável para uma soneca.
Chegando na reserva, entro no bloco um (o bloco que eu fico na maioria dos dias) sou responsável pela educação ambiental. Registrei a minha chegada na sede com a biometria que logo aparece meu nome (Lucas Dantas) no aparelho. Hoje viria uma turma de uma escola estadual de uma cidade a duas horas daqui, seria um diabem agitado.
Diretora Lúcia entra no bloco um pra conferir se estava tudo em ordem, sempre tropeçando em algumas pacas empalhadas no chão.
- Lucas, acho que está na hora de você tirar essas pacas daqui, alguém vai acabar estragando a taxidermia que demoraram dias pra fazer - diz ela rabugenta como sempre.
- Claro dona Lúcia, vou coloca-las na estante pra ter uma visão melhor - digo dando uma risada singela.
- Os alunos chegaram em quarenta minutos, acho bom você já saber o que vai falar
- Claro que sei, estava pensando no que eu falaria a semana inteira - retruco
- Que bom, finalmente um estagiário que pense por aqui - ela sai do bloco
Sempre me perguntei por que ela sempre estaria tão estressada, desde que conheço aquela mulher ela sempre está reclamando.
Arrumo os stands com os animais espalhados, temos de tudo por aqui, felinos, aves, jacarés...
Quando os alunos chegaram ficaram impressionados ao descobrirem que o bico do tucano toco permanece colorido mesmo quando morre, viram o esqueleto todo branco com o bico laranja e se encantaram.
- Tio, todos esses animais são de verdade? - fui questionado
- Bom, eram, todos esses animais morreram e passaram pelo processo de taxidermia que vocês conhecem por empalhar. Depois disso vieram pra esse salão.
- Ótimo, estamos em uma sala lotada de cadáveres de animais - diz algum sem graça
- Por que o nome da reserva é Onça celeste? - perguntaram
- Bom, temos uma onça pintada vivendo livre aqui na reserva, ela é uma fêmea que foi batizada de Charía por causa de uma lenda indígena sobre uma onça que persegue a Lua, daí o nome onça celeste - explico - Agora está na hora de vocês conhecerem a Boiúna galera.
- Quem é Boiúna?
- A nossa fêmea de Eunectes murinus, vulgo sucuri verde - digo
Levando eles para a sala do fundo se deparam com o terrário da Boiúna, com água, troncos, assim como seu habitat natural. Se trata de um animal adulto cerca de cinco metros e meio de comprimeto, todos ficaram encantados com o tamanho da nossa estrela do bloco um
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Águas Rasas- Diário De Um Rapinante
FantasyCiência, magia e natureza. O que pode acontecer em uma cidade litorânea rodeada de mistérios e de incertezas?