cartas.

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Cellbit não encontrou Roier no dia seguinte, e nem na semana seguinte. As coisas depois daquela chuva ficaram tão complicadas que ele se viu obrigado a ficar preso dentro de seu escritório junto a Max, que embora não fosse com quem ele quisesse estar, ainda era uma boa companhia.
 
Essa rotina de isolamento se deu por conta de um visitante misterioso que entregou um livro repleto de códigos e sumiu. Desvendar aquilo ocupou todo o seu tempo e mente, o que fora um problema.
 
Três semanas após a chuva, Richarlyson chegou em casa sem seu dente de leite e uma carta mal feita de Roier. Era um convite para um encontro. Um convite. Um encontro. Cellbit era um ex presidiário, estava preparado para qualquer situação, menos para aquela.
 
— Pai, eu já fiz a mochila — Richarlyson lhe recobrou a memória, e o loiro tentou ficar no que estava acontecendo agora.
 
Philza, BadBoyHalo e Foolish haviam organizado uma festinha do pijama para as crianças e seus respectivos cuidadores, seria um encontro casual e divertido, apenas para acalmar os ânimos. Richarlyson queria ir, mas Cellbit não poderia ficar lá porque ambos os encontros, por coincidência do destino, caíam no mesmo dia e na mesma hora.
 
— Okay. Deixa só o pai arrumar o cabelo — Cellbit havia passado sua noite toda escolhendo uma roupa decente e se preparando para aquele encontro. Ele tentou colocar na cabeça de que era um encontro com Roier, e nada de diferente aconteceria, mas todas as vezes que ele colocava "encontro" e "Roier" na mesma sentença a sua barriga ficava engraçada e seus lábios se retorciam em um sorriso.
 
— Pai, pra onde o senhor vai tão arrumado assim? O senhor nem banho toma.
 
— Eu vou pra uma reunião da Ordo, e para de dizer isso, eu não sou seu pai Pac — Cellbit respondeu levemente contrariado e passou a mão por seu cabelo loiro escuro. Ele se olhou no espelho uma última vez e tentou gostar de sua aparência, as semanas sem dormir lhe trouxeram uma marca feia: as olheiras.
 
— "Reunião da Ordo" — Richarlyson repetiu ironicamente enquanto fazia aspas com seus dedos. Cellbit riu e bagunçou os cachos de seu filho, que também riu. — Quem vai ficar comigo na casa do tio Philza?
 
— O pai Forever está lá. Agora vai pegar suas coisinhas pra gente ir.
 
Richarlyson deu um sorriso banguela e correu para o quarto pra pegar suas coisas. Cellbit pegou a mochila pesada e jogou pelo seu ombro, então ele pegou Richarlyson no braço e saiu de casa. Estava uma noite monótona lá fora, poucas luzes da favela estavam acesas. A lua cheia parecia estar tão perto da terra que trazia uma sensação estranha para o peito do loiro, que tentou dizer a si mesmo que era somente uma ansiedade boba e não um sintoma de suas noites sem dormir.
 
Os dois homens foram até a casa de Philza em um silêncio confortável. Richarlyson mantinha sua mão entrelaçada no cabelo loiro de Cellbit e os olhos bem atentos ao que acontecia ao seu redor, às vezes Richarlyson agia como um adulto, e Cellbit não achava isso muito saudável, porém entendia que nas circunstâncias atuais, todas as crianças da ilha precisavam assumir uma postura madura para se manterem vivos. Ver Richarlyson tendo atitudes infantis como fazer xixi na cama por conta de um pesadelo, dormir com a luz acesa ou com o Pulgão, era bastante reconfortante para ele.
 
Ao chegarem na casa, foram recebidos por Foolish e Bad, que discutiam sobre alguma coisa não interessante. Vegetta estava com seu braço ao redor do pescoço de Foolish e observava seu parceiro implicar com Bad.
 
— Cellbit, tell'em! — Bad virou-se para o loiro com uma expressão tão macabra quanto sua roupa de demônio. — Diga a eles que não vou repetir mais nenhuma palavra! Não quero falar palavrão!
 
Vegetta riu e puxou Foolish para mais perto de si. Cellbit nunca tinha reparado em como aqueles dois eram um dos casais menos problemáticos e mais amorosos que tinha na ilha.
 
— Foolish — Cellbit o chamou e levantou Richarlyson um pouco mais. — Você só não usa a banana na mão quando o Vegetta está perto. Você só usa ela pra matar a saudade dele?
 
Foolish ficou tão vermelho quanto as rosas recém-plantadas no jardim de Philza. Bad gargalhou alto e começou a implicar com Foolish e Vegetta, Cellbit escapou de fininho para a casa de Philza.
 
— Pai, o que o senhor quis dizer com isso?
 
— Nada não, filhão! Foi só besteira do papai, ok? — o loiro rapidamente disse e bateu na porta de madeira. — Olha, o pai não vai poder ficar, mas ele promete que volta pra te buscar, ok?
 
Richarlyson fez que sim veemente e foi pro chão. Cellbit entregou a bolsa para o seu filho e se agachou na frente dele.
 
— Pai te ama, Richas — ele disse e depositou um beijo longo na têmpora do menino. — Divirta-se e cuidado, ok?
 
— Também te amo pai — Richarlyson respondeu, e por um segundo ele pensou em dizer algo a mais, mas foi atrapalhado com o barulho da porta sendo aberta.
 
Cellbit ergueu seus olhos para encarar Philza, mas seu coração errou uma batida quando seus olhos exaustos se encontraram com os olhos brilhosos de Roier, que pareceu bastante surpreso ao vê-lo ali.
 
Hola, Tio Roier! — Richarlyson o cumprimentou rapidamente e deu tempo para que Cellbit se organizasse e levantasse do chão.
 
Cellbit achava que seus sentimentos por Roier haviam se ajustado em seu peito, que batidas desregulares, mãos suadas e borboletas no estômago não iriam mais acontecer. Só que seu próprio sistema o havia traído, e agora ele estava ali, completamente estático e envergonhado por ter encontrado Roier depois de ter acidentalmente o evitado por semanas.
 
O que ele deveria fazer em uma situação constrangedora como aquelas? O que ele teria feito no passado? Talvez nada. É isso, o Cellbit do passado teria virado suas costas e ido embora sem se importar o suficiente com a presença do outro, mas ele não podia fazer isso. Não ali, e não naquelas circunstâncias.
 
Philza (Deus abençoe esse homem!) Se aproximou com um largo sorriso e deu boas-vindas a Richarlyson, que se despediu com um tchau rápido e correu na direção de Dapper e Tallulah. Cellbit tentou focar em seu filho, e então nas palavras inglesas que saíam da boca de Phil, mas seus olhos pareciam se arrastarem e focarem na face de Roier, em seu sorriso e em seu olhar bonito e carismático. Tudo naquela observação abalou o interior do loiro. Sua calça social marrom escura foi puxada bruscamente, e seus olhos tomaram um novo rumo.
 
Bobby estava com suas bochechas infladas e a bandana de seu pai na testa. Sua mão estava fechada e ele parecia estar segurando algo. Cellbit estendeu sua mão e ganhou quatro balinhas de café.
 
— Gracias, Bobby! — sua resposta surpresa chamou a atenção dos dois outros homens que estavam parados na porta. Bobby não quis ficar ali para receber elogios, ele correu para dentro de casa e se misturou com as crianças.
 
— Vocês vão ficar? — Philza perguntou em inglês, e ao fundo se ouviu a gargalhada de Forever.
 
— Eu estou indo verificar umas coisas — seu olhar se encontrou com os de Roier. — Sozinho. Mas eu vou voltar pra buscar o Richarlyson.
 
— Não vou poder ficar, estarei na terapia! — Roier blefou.
 
Phil apenas arqueou suas sobrancelhas e deixou um sorriso morno transparecer. Cellbit não quis prolongar aquela conversa e se despediu nervosamente, ele mal esperou por Roier. Seu corpo se movimentou até à saída da casa e quase trombou em Bad, que continuava em uma discussão interminável, mas dessa vez com Vegetta. Ele saiu sem se despedir e passou a mão na gola de sua blusa branca social, tentando a afrouxar para conseguir respirar. Seus passos o levaram a lugar nenhum, e quando ele menos notou, estava parado em lugar nenhum juntamente a Roier.
 
— Gatinho, é bom te ver!
 
Cellbit abriu um sorriso envergonhada e pôs uma mecha de seu cabelo atrás da orelha.
 
— Oi, Guapito.
 
— O que estava fazendo, cara? Você sumiu!
 
— As coisas ficaram um pouco complicadas e corridas, acho que essa é a primeira vez em três semanas que saio de casa — Cellbit bocejou e piscou seus olhos. Ele havia tomado quase duas garrafas de café antes de sair de casa, como ele ainda podia estar com sono?
 
— Três semanas em casa? No, no, no! — Roier pareceu tão perplexo que até mesmo sua expressão mudou. — Gatinho precisa dormir! Descansar!
 
— Eu estou bem.
 
Ele não estava nada bem.
 
— Pra onde vamos, guapito?  — Ele perguntou numa tentativa de desviar do assunto, mas Roier não parecia o tipo de pessoa que esquecia facilmente sobre o que lhe era dito.
 
— Para onde você quiser, gatinho.
 
Pra qualquer lugar que não seja perto de uma cama. Cellbit pensou consigo mesmo e coçou seus olhos. Roier o observou em desaprovação.
 
— Você já jantou? — ele perguntou em inglês e Cellbit pensou um pouco e então assentiu com sua cabeça. — Podemos só caminhar, então. Não tem um lugar em específico para irmos aqui.
 
Cellbit apenas riu soprado e passou a mão por seus olhos, que se forçavam a estarem abertos. Se privar de dormir era engraçado, os primeiros sintomas são apenas cansaço, irritabilidade e uma leve semelhança a estar bêbado, mas depois de dias o seu cérebro começa a alucinar, distorcer a realidade em sua volta por não conseguir se organizar. O louro sentia-se exatamente assim. Alucinando. E talvez ele estivesse alucinando aquele encontro. Talvez estivesse alucinando a voz de Roier, o som de sua risada, o toque dos dedos furtivos que se entrelaçaram com os seus.
 
Talvez tudo fosse uma mera alucinação.
 
Ele apertou a mão de Roier.
 
Nenhum dos dois falou por longos minutos, apenas caminharam no escuro por entre às árvores. O silêncio entre ambos era confortável, o que surpreendeu o próprio loiro. Não era sempre que ele conseguia ficar em um silêncio não constrangedor com alguém.
 
— O que você ficou fazendo por três semanas preso em casa? — Roier se atreveu a perguntar, e Cellbit se atreveu a responder.
 
— Bad, Max e eu estávamos investigando e debatendo. Foram debates muito chatos, você sabe — bocejou. — Conversamos sobre algumas pistas, algumas teorias e projetos futuros. Quando eu voltar pra casa vou organizar uma pilha de papéis.
 
— Bad e Max te visitam quase todos os dias, heh? — Roier evidenciou aquele ponto e Cellbit piscou seus olhos lentamente.
 
— Não fique com ciúmes, honey — ele tentou brincar com a situação, mas aquele simples apelido fez com que Roier virasse o rosto e não comentasse mais sobre o assunto. — Bad e Max são ótimos, eles têm me ajudado bastante com tudo o que estou fazendo.
 
— É? Eu também poderia te ajudar se você quisesse — Roier levantou as mãos que estavam entrelaçadas e as beijou carinhosamente. — Mas eu sei que você não me quer lá, não, tudo bem, tudo bem! Estou sendo expulso da sua casa! Ok!
 
Cellbit gargalhou com todo aquele drama repentino.
 
— Guapito, você não gostaria de passar horas me ouvindo falar sobre o que eu penso-
 
— É claro que eu gostaria! Eu sempre ouço você, gatinho! Mesmo quando você está murmurando aquelas coisas sem sentidos ou coloca aquelas músicas para pensar melhor — a exposição repentina fez com que o loiro ficasse completamente envergonhado de seus traços incomuns. — Eu acho fofo, cara.
 
— Hoje eu não quero falar sobre o meu trabalho — Cellbit suspirou. Dizer aquilo em voz alta era esquisito. Como assim o detetive da ilha, o mestre dos enigmas, o terror do Cucurucho não queria falar sobre suas teorias? Como ele ia passar aquela oportunidade de falar mal da Federação? — Você é fã do Homem-Aranha, não é? Me conta quais são seus detalhes favoritos dos filmes.
 
Cellbit se arrependeu amargamente de ter feito aquela pergunta. Não era porque ele não gostava de ouvir os outros falarem sobre o que gostavam, mas era porque Roier passou trinta minutos inteiros detalhando suas cenas favoritas, adicionando contexto, imitando vozes, falando de cenas pós-créditos. E essa conversa foi tão longa que Cellbit simplesmente sentiu seu cérebro apagar por alguns momentos e recobrar a consciência quando eles — de alguma forma — já estavam na casa de Roier, na cozinha, conversando (ou tendo um monólogo) sobre filmes.
 
— É por isso que eu amo esses filmes! — Roier pareceu finalmente ter encerrado o assunto. Cellbit piscou seus olhos como quem tivesse acabado de acordar ou voltar de uma viagem mental. — Nós deveríamos assistir juntos!
 
— Claro — ele respondeu sem ter ideia do com o que tinha acabado de concordar. — Você é realmente muito fã, Guapito. Uau. Agora eu sei como você se sente me escutando falar sobre códigos e tudo mais.
 
— A diferença é que eu gosto de te escutar falar, pendejo.
 
— Ei! Eu também gosto de te ouvir falar! — Cellbit rebateu. — Por isso eu fico olhando pra sua boca.
 
Talvez aquilo tenha soado um pouco nojento e bastante humilhante, uma vez que Roier arqueou suas sobrancelhas e gargalhou alto.
 
Que eso, Gatinho? Don't talk to me like this!
 
(Que isso, gatinho? Não fala assim comigo!)

umbrella; guapoduo Onde histórias criam vida. Descubra agora