A Peça

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Revirava a pilha de sucatas. Como todos os dias. Jogou por cima dos ombros: parafusos, engrenagens, garrafas vazias, até ver algo diferente.

— Lilah! — gritou.

— O que é? — Ecoou a voz distante. Detrás do outro morro de tranqueiras.

— Encontrei uma coisa! — Amarrou o treco no pescoço e correu até ela.

— Onde achou esse tecido?

— Passando o carro enferrujado. Não é bonito? Essa cor é tão forte!

— Sabe que não enxergo cores, Adam. Por que ficou tão feliz com esse trapo?

— Eu não sei. Achei bonito. E olha só — Levantou a coisa até cobrir a boca. - Assim, pareço até outra pessoa!

— Não há outras pessoas. — Ela volta a revirar sucatas.

— Isso não é verdade. O papai saiu em busca de iguais a ele.

— "Papai", "papai"! Por que fica chamando ele assim? Mesmo que tenha ido procurar gente, não vai achar. Ele sabe que é o último.

O vento sopra carregando poeira, e com ela, o cheiro de ferrugem. O céu escurecido pelas nuvens dificulta saber se é dia. E tudo ao redor é um amontoado de tralhas.

— O que foi? Por que ficou tão quieto? — Virou para ele. Cabisbaixo. Ela deu um suspiro. — Não entendo essa expressão. É porque não gostou do que eu disse? Ele nos mandou procurar a peça, e não um pano velho.

— É que se parece com os tecidos que o papai usa.

Lilah se aproxima e segura a bandana.

— Ele não usa pra cobrir o rosto — Desce o tecido até o pescoço —, usa pra cobrir o corpo. Não precisamos cobrir o corpo. E se precisássemos, esse trapinho não seria o bastante. — Puxa a bandana rasgando do pescoço e a joga na pilha. — Volte a procurar a peça.

Ele era pequeno, como uma criança. Lilah era um pouco mais alta, como uma adolescente. Todos os dias ele sobe a pilha de tralhas mais alta e olha para o horizonte, na esperança de ver seu pai. Tudo o que vê são edifícios quebrados. Caídos ao chão. E muita poeira levada ao vento.

— Adam, encontrou alguma coisa?

— Com o que parece?

— Eu não sei. O criador não deu muita instrução. Disse apenas que você vai saber quando achar.

Dias, meses, e anos passaram. Nenhuma sombra de mudança nos dois. Revirando sucatas a todo instante, sem nunca atravessar os limites da cerca. Certa vez, durante o período de descanso. Adam perguntou.

— Sente falta deles?

— De quem?

— Seus irmãos. — perguntou, se erguendo um pouco no colchão.

— Meus iguais. Não tenho irmãos.

— Você entendeu. Eu digo, aqueles que existiam com você antes de mim.

Lilah virou de costas. Deitavam no mesmo local em colchões separados. Uma casa feita de containers, partes improvisadas de lataria e madeira velha.

— Você queria que o papai tivesse levado você junto com eles? — perguntou Adam.

— Quer parar com isso? Por que fica chamando ele de "papai" se nunca estiveram juntos de verdade?

— Eu não sei explicar. Sinto como se ele estivesse comigo. — Ele toca o buraco brilhante em seu peito.

— Isso é impossível. Quando você despertou da cápsula todos já haviam partido. Só eu fiquei pra trás, incumbida de esperar você.

— O papai mandou.

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